Datas inesquecíveis






Meu querido pai,


Há cem anos, você ainda era um bebê incapaz de compreender os estragos que a famosa Gripe Espanhola havia causado ao mundo, ao completar a tragédia da Primeira Grande Guerra Mundial, deixando, ambas, milhões de mortos por toda parte, inclusive alguns na pequena Jesuânia onde você acabara de nascer. Sobrevivendo ao parto difícil de vovó Maria, você engatinhou junto com a Revolução Russa de Stalin e o Nazismo de Hitler, tempestades que se armavam na longínqua Europa, cujos ecos da trovoada eram audíveis nas discussões políticas na nossa pequena cidadezinha, ainda hoje pouco conhecida no Sul de Minas. Há dez anos impossibilitado de acompanhar o mundo dos vivos, você não poderia imaginar que aqueles temas polêmicos dos seus primeiros anos de vida voltariam a dividir corações e mentes e a sombra fascista voltou a escurecer os nossos dias.

Quando jovem, você conheceu a ditadura de Getúlio Vargas e se opôs a ela como estudante na Faculdade de Medicina, no mesmo território onde anos mais tarde eu enfrentaria a ditadura militar, embora esta última fosse menos intolerável para você, diante da ameaça comunista de Jango Goulart, da qual convenceram você e tantas outras pessoas bem intencionadas em 1964, o que culminou naquele 31 de março, como hoje, um dia em que havia nuvens de insegurança política no horizonte, carregadas de conspirações e motins. Há rumores nos quarteis novamente, há milícias e polícias insanas pintando a cara de verde e amarelo semeando ódio e violência.

Na Segunda Guerra você torceu às lágrimas pelos Aliados e comemorou a vitória da democracia sobre os impérios autoritários que haviam se construído sobre a ambição imperialista e a intolerância humana. Recém doutor, relegou os franceses para os momentos de amur e tujurs e animou-se com a cultura norte-americana do mérito, pendurando em seu escritório a frase emoldurada “se for capaz de construir uma ratoeira, escrever um livro ou plantar uma árvore melhor que seu vizinho, construa sua casa no meio da floresta e o mundo abrirá caminho em direção à sua porta”. Confesso que nunca entendi bem a ratoeira na frase, pois ela destoa poeticamente do livro e da árvore, e lamento decepcionar você, mas levei muito tempo, mas consegui me libertar do apelo primal da meritocracia.

Encantado com seus heróis Luis Pasteur e Oswaldo Cruz, você abraçou a medicina como primeira esposa, idealizando um futuro de grandes conquistas para a saúde humana, baseadas na ciência e da dedicação humanitária. Compartilho seu sonho, mas receio entristecer você, porque hoje há inúmeros médicos que negam as vacinas e receitam medicamentos sem comprovação científica para a pandemia que ora nos atinge. Com seu plano político perverso de não enfrentar a doença e sem vacinas suficientes, temos um presidente que se assemelha a um zumbi ressuscitado com os mesmos valores da extrema direita de 100 anos atrás, e por isso caminhamos com as mesmas defesas que dispúnhamos na Gripe Espanhola: máscaras e distanciamento social.

Desculpe incomodar você com estas preocupações que tanto me afligem, mas precisei ser franco como sempre fomos um com o outro. Precisei libertar meu coração expondo minha tristeza para poder, enfim, dizer o quanto sinto sua falta, o quanto gostaria de tocar você e ouvir suas palavras. Mesmo sabendo que seríamos vulneráveis juntos neste momento difícil, seria confortante estarmos juntos, ainda que frágeis. 

Queria lhe mostrar que seu exemplo está presente em todos os dias em minha vida, que venho me esforçando, como você, para fazer a coisa certa. 

Além de tudo, gostaria de ser capaz de amar como você, que nos amou a todos.

Obrigado pelos 100 anos de sua existência.

Seu filho de sempre.

Vavado


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