A importância de ser formiga

 

Francisco mostrou-me a aglomeração de formigas em torno do fragmento de presunto que caíra de seu sanduíche, enquanto lanchávamos no quintal, um espaço vital que temos a sorte de dispor para enfrentarmos de forma privilegiada o isolamento social durante esta pandemia que avança terrivelmente pelo mundo, em especial, pelas terras desgovernadas do nosso país.

Passamos um tempo tentando compreender a lógica daquelas pequenas formas de vida, que se esforçavam para arrastar o precioso alimento para dentro do formigueiro, mordiscando, puxando, levantando, arrastando e aparentemente dividindo tarefas com alguns indivíduos maiores, dotados de mandíbulas poderosas, que cortavam o presunto em pedaços menores, mais fáceis de transportar. 

Curiosos, conseguimos medir a velocidade média das formigas para virem do formigueiro (97 km/h) e para voltarem (46 km/h), embora não tenhamos atinado com um motivo explícito para esta variação. Depois de vários minutos, a equipe, formada por dezenas de formigas menores e umas seis maiores, conseguiu carregar a migalha para dentro de uma fresta na parede, presumivelmente uma das portas de entrada daquela comunidade trabalhadora. Certamente, haveria um banquete no interior do formigueiro para comemorar aquela façanha coletiva, uma tarefa difícil e coordenada de maneiras que meu neto e eu não conseguimos identificar.

Ficamos ali, cuidando para não esmagarmos nenhuma delas, filosofando em torno da expedição organizada e bem sucedida das formigas, falando sobre a complexidade da natureza, a diversidade de soluções evolutivas entre as formas de vida, a maravilha da vida, em si.

Dizem que a dignidade humana seria decorrente da nossa racionalidade, que nos distinguiria dos demais animais e a racionalidade seria a capacidade de fazer escolhas orientadas pela lógica. Esta razão nos permitiria a liberdade e a possibilidade de escolhas, o que nos levaria à moralidade, e desta racionalidade derivariam as noções de justiça, de direitos humanos e de humanidade.

Observando as manobras realizadas pelas formigas diante dos desafios para carregar o presunto até seu esconderijo, percebo que elas realizaram manobras moduladas de forma lógica, como percorrer a menor distância possível na maior velocidade permitida pelos obstáculos, algo que não pode estar programado previamente em seus genes para ser executado naquela circunstância específica.

Qual a diferença deste comportamento lógico das formigas daquele que seria gerado na mente humana para resolver o mesmo problema? Estou cada vez mais convencido de que todos os seres vivos possuem algum tipo de mente (ou consciência em graus variados) que permite o ajuste de comportamento às mudanças no ambiente no qual evoluíram [i].

Portanto, tenho dúvidas se é válido utilizar justamente uma característica, que supostamente os demais seres vivos não possuiriam, a consciência, para estabelecer sobre ela o valor fundamental de nossa diferença e humanidade. Não seria outra forma de dizer que possuímos algo acima da natureza, como as tentativas metafísicas e religiosas que procuram nos separar dos animais porque teríamos, por exemplo, uma alma imortal?

Adotar a hipotética racionalidade exclusiva dos humanos, como critério para nos separar dos demais seres vivos, não seria escolher a dedo um atributo alcançado de forma progressiva pela seleção natural para dizer que ele seria o critério fundamental de distinção da humanidade? Como se eu pudesse supor que serão cartunistas somente aqueles que têm no nome as letras L, O e R.

Esta escolha da racionalidade como característica exclusiva da humanidade é um argumento que fazia sentido quando nosso conhecimento sobre o funcionamento do cérebro e da mente eram precários. Hoje, podemos questionar se somos realmente racionais e se aquilo que chamamos de racionalidade seria uma capacidade exclusiva dos seres humanos. Os estudos em neurociência sugerem que não somos seres tão racionais como imaginamos e desejamos, segundo Ramon Cosenza, Robert Sapolsky, Daniel Kahneman e outros.

Saber que nossos comportamentos são derivados de mecanismos complexos e inconscientes ou subconscientes e que raramente utilizamos a racionalidade para tomar decisões, reduziria nossa dignidade? E se uma pessoa sofrer uma doença mental que retire dela a racionalidade, ela perderia sua dignidade? E durante o sono, ou sob o efeito de drogas, como a sedação para manter a intubação num leito de CTI, teríamos nossa humanidade reduzida? Alguém em coma profundo perderia o status de ser humano e não mais seria merecedor dos direitos humanos?

Se o argumento da racionalidade parece parcial e arbitrário quando consideramos a natureza como um todo, seria possível dar um passo mais profundo na busca por um valor comum a todos os animais, incluindo os seres humanos? E se considerarmos que todos os animais são movidos por uma razão ainda mais fundamental, mais imperativa a todos, que seria o desejo de viver?

A partir de uma primeira forma de vida, surgida há milhões de anos, evoluímos todos movidos por um impulso fundamental: sobreviver e passar a chama da vida adiante. Desde o menor inseto até o mais intelectual dos humanos, nossos comportamentos são condicionados a evitar a dor e a procurar o prazer, pois estes sentimentos são indicadores neurológicos de maior ou menor chance de morte ou de vida, respectivamente. Ao desviarmos a mão do fogo para evitarmos a queimadura, estamos agindo da mesma forma que a formiga ao tentar preservar a integridade de seu corpo na mesma circunstância. Não somos mais racionais do que ela nesse sentido: ambos defendemos a própria vida.

Mas o que vem a ser a “vida”? Como diz Romeu Guimarães, esta não é uma resposta simples, como aparenta ser. A definição de vida deve contemplar tanto uma bactéria como uma baleia jubarte. Na minha fantasia, apesar de ser um terreno de especialistas em biologia, “vida” seria a “chama metabólica” que é repassada de forma ininterrupta por estruturas moleculares desde a primeira vez em que ela surgiu no nosso planeta.

Minha filha Ana enviou-me um vídeo interessantíssimo (ver abaixo), que ilustra a continuidade de um determinado processo vital como fundamental para o conceito evolutivo de vida: a atividade metabólica contínua de uma estrutura molecular, que surgiu de forma aleatória em nosso planeta, que se renova e se multiplica, cujas partes não possuem vida própria, mas cujo conjunto resiste à entropia. Desta vida original, derivam todos os seres vivos e ela ainda não foi reproduzida artificialmente.





Preservar a vida se torna, portanto, o fundamento de toda a natureza. O desejo de viver vem evoluindo e se tornando cada vez mais complexo, transformando-se do impulso bioquímico para iniciar uma divisão celular numa bactéria até o sofisticado sistema de acasalamento das Aves do Paraíso ou das nossas formigas recolhendo o pedacinho de presunto. Somos parte desta cadeia evolutiva da vida, na qual desenvolvemos relações sociais complexas necessárias para mantermos nossa vida e de nossos filhos, os novos humanos que devem carregar a chama metabólica adiante.

Se a necessidade comum e fundamental de todos os animais é a sobrevivência, então o valor mais importante para todos seria a preservação da vida, em todas as suas formas, ou seja, todos os animais teriam o direito inalienável à vida. Deste direito à vida devem decorrer os demais direitos, que permitam que cada ser vivo mantenha sua existência, de acordo com suas características individuais adquiridas a partir da nossa evolução comum. Neste contexto, nossa formiga-exemplo tem o mesmo direito à vida que o banqueiro de Nova York.

É claro que esta igualdade de direitos entre formigas e banqueiros traz problemas para o nosso relacionamento com as galinhas, porcos, vacas e outros animais, os quais consumimos como alimentos. No entanto, o fato de não respeitarmos este direito de todos os animais à vida não quer dizer que ele não exista, assim como o desmatamento que promovemos na Amazônia não prova que ela possa ser destruída. Por isso, a ideologia dominante tenta nos induzir a pensar que os demais animais além de nós não têm alma, não são racionais, não têm sentimentos e são inferiores, para podermos capturá-los, escravizá-los, matá-los e comê-los sem qualquer constrangimento.

Sabemos que nenhuma forma de vida sobrevive sozinha, pois todas dependem do ambiente e de outros seres vivos, o que significa que o direito de todo animal à vida se estende ao direito de preservar o ambiente, no qual evoluiu, para que sua vida seja possível. 

Este ambiente não se constitui apenas nos elementos físicos, a terra, a água, o ar ou o clima, mas também é formado pelo ambiente social, por exemplo, no caso dos animais sociais, ou pelo ambiente cultural, no caso da nossa espécie. Em consequência, não podemos destruir um ambiente ou uma cultura, pois isto contraria o direito fundamental à vida daqueles seres que dependem dela.

Portanto, o direito à vida é o ponto de partida do qual derivam os demais direitos, como à liberdade e à autonomia e, se houver autonomia e liberdade de escolha, poderemos falar em moralidade. Mas isto é assunto para uma próxima expedição de formigas.

Depois de algumas horas, o sol escaldante ocupou o local onde acontecera a operação coletora e expulsou as últimas formigas para a sombra dentro da parede. O solo quente se tornou um pequeno deserto, onde nenhuma forma de vida era visível.

Do outro lado do muro onde moram as formigas, numa tragédia de dimensões inimagináveis, naquele mesmo dia completaram-se 280 mil vidas humanas perdidas no Brasil desde o começo da pandemia de COVID-19. E todos sabemos que os responsáveis por este genocídio não respeitam a vida, de ninguém.


Lor
Março 2021


Obrigado pelas leituras, críticas e sugestões, Thalma, Ana, Eduardo Gontijo e Ramon Cosenza.




[i] O amigo Ramon Cosenza lembrou-me que Darwin propôs semelhança entre a mente humana e a “mente das minhocas” em seu último livro de 1881, citado por Oliver Sacks em The river of conciousness: “Para Darwin, a capacidade de modular respostas indicava "a presença de algum tipo de mente". Ele também escreveu sobre as "qualidades mentais" das minhocas em relação ao suprimento alimentar para sua tocas, observando que "se os vermes são capazes de julgar... tendo percebido um objeto perto da entrada de sua toca, (qual seria) a melhor maneira de arrastá-lo, eles precisam adquirir alguma noção de sua forma geral”. Isso o levou a argumentar que as minhocas "merecem ser chamadas de inteligentes, pois elas agem quase da mesma maneira que um homem em circunstâncias semelhantes".



(Original de Oliver Sacks: “For Darwin, the ability to modulate responses indicated “the presence of a mind of some kind.” He also wrote of the “mental qualities” of worms in relation to their plugging up their burrows, noting that “if worms are able to judge…having drawn an object close to the mouths of their burrows, how best to drag it in, they must acquire some notion of its general shape.” This moved him to argue that worms “deserve to be called intelligent, for they then act in nearly the same manner as a man under similar circumstances.)



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