O Rio que sangra e amanhece
Dizem que o Rio acorda sempre bonito. No entanto, às vezes o
amanhecer vem com gosto de ferrugem na garganta e o sol parece hesitar, como se
também tivesse medo de entrar pelos becos onde a vida custa caro demais.
Naquela terça-feira de outubro, a cidade despertou não com pássaros, mas com
estampidos — uma sinfonia áspera e descompassada que atravessava as janelas e
parava o coração das mães antes mesmo do café manhã.
Mais uma “operação policial”. Nome técnico, quase limpo, que
cabe bem em manchete. Um eufemismo de guerra. Na prática, foi uma rajada curta
e grossa na carne da cidade e do país. Cento e vinte e uma vidas, disseram os
jornais ao fim do dia — mas os jornais apenas somam, não sentem. O número,
redondo e terrível, já supera o do Carandiru, e o espanto se repete: outra vez
a morte fez expediente em horário comercial, com conferência de imprensa à
tarde e os corpos ainda quentes largados para trás.
A Fiocruz — guardiã discreta da saúde e da razão — soltou um
manifesto. Pediram “Segurança Pública Cidadã”. Um nome bonito também, cheio de
maiúsculas. Mas o texto, nas entrelinhas, trazia mais que burocracia: vinha
impregnado de luto. Dizia, com uma serenidade de quem cura feridas, que o
problema é mais que estatística. Que cada morte dessas é o vírus de uma
epidemia antiga: a violência que corrói o cotidiano, o refúgio, o lazer, o
descanso. Que invade os pulmões invisíveis da cidade e vai matando sem manchete,
um pouco a cada dia.
Na Penha, no Alemão, o silêncio começou quando as balas
pararam. É sempre depois dos tiros que vem o desespero. As mães começaram a
descer os morros de chinelo e alma nua, procurando filhos que talvez já não
respirassem. O choro ecoava nas vielas como cântico antigo, sem padre e sem
missa. O Rio se transformou em capela improvisada, com velas acesas nas
esquinas e crianças olhando sem entender — apenas decorando, cedo demais, o
vocabulário da dor. Um pai recolhe o corpo do filho morto. Bandido? Sim, mas
filho. Perdido duas vezes, para o crime e para o Estado.
A televisão mostrava as imagens aéreas: caveirões como
formigas gigantes desfilando entre casas frágeis, helicópteros pairando, fumaça
subindo. De cima, tudo parece parte de uma lógica. De perto, não há lógica
alguma: há uma panela no fogo, uma avó gripada, uma menina que ontem brincou de
boneca e hoje se esconde sob a cama. Nenhum drone enxerga isso. O olhar de cima
desumaniza; o olhar de dentro falta.
No manifesto, lia-se: “Política de segurança pública se
constrói com etapas planejadas e estruturantes...” Palavras bem escolhidas,
merecidas, necessárias. Mas quem vive o barulho sabe que a segurança pública,
ali, é antes o exercício de sobreviver um dia após o outro — como uma goteira
insistente sobre a cabeça. A cada manhã o povo desce o morro sem saber se
volta. E ainda assim vai, porque há roupa para lavar, metrô para pegar, conta
para pagar. A rotina permanece como teimosia da esperança.
A cidade é um grande corpo, sua pele — asfalto, telhado,
morro, viela — sangra sem parar. A dor do Rio não é manchete de um dia; é
ferida de séculos. Por trás de cada corpo há um retrato em cima da geladeira,
um uniforme dobrado, um sonho miúdo de estabilidade. O Rio continua lindo,
dizem os folhetos turísticos, mas ninguém mostra as olheiras da cidade —
profundas, roxas, intermináveis.
A necropolítica, palavra difícil e arrogante, virou
vocabulário cotidiano. É o governo pela morte, a gestão do descarte. O tiro
político tem CEP e cor definidos; o fuzil aprende geografia de ouvido: sabe a
diferença entre Leblon e Complexo da Penha. No primeiro, é escolta. No segundo,
é sentença.
E, no entanto, o documento da Fiocruz insiste: “É preciso
valorizar o diálogo, a paz e a vida.” Sim, é preciso. Mas diálogo com quem, se
metade da cidade não fala e a outra metade não escuta? Paz para quem, se há
quem viva de vender o medo? E vida — essa palavra tão esmagada — o que
significa para um menino que aprendeu a correr antes de aprender a ler?
No hospital, vejo de perto os efeitos da guerra. A medicina
das balas é silenciosa e suja. Chegam feridos em silêncio, às vezes trazidos
por amigos, às vezes por ninguém. O corpo exala o cheiro metálico do pavor.
Quem vive à beira da morte aprende a orar com os olhos abertos. Escrevo porque
curar é também testemunhar. E porque as feridas, quando não se escrevem,
apodrecem no esquecimento.
A violência é também doença: infecciosa, contágio de alma.
Transmite-se na falta, na miséria, na indiferença. Não há antibiótico contra
descaso. Toda bala perdida vem de um Estado que se perdeu antes.
As vozes do manifesto pedem “formação cidadã das forças de
segurança”, “articulação efetiva”, “transparência e controle social”. São
palavras equilibradas como quem anda em corda bamba. Em cada linha, há uma
súplica: parem de normalizar o horror. Mas a cidade já tem o ouvido com um
zumbido crônico e viciado. A sirene virou canção de ninar. O caveirão é figura
de rotina, como o carteiro ou o padeiro. E o medo, essa bruma que não se
dissipa, atravessa gerações como herança involuntária.
O Rio lindo, cercado de mar e morro, parece sempre um corpo
em febre. Febre de desigualdade, febre de pressa, febre de esquecimento. A cada
chacina, a cidade diz “basta”, mas o eco se perde no vento da Baía. Logo o
noticiário muda: vem o carnaval, o futebol, a novela. A ferida fica ali,
latejando à sombra. O Brasil inteiro assiste, comenta, se indigna — e esquece.
Mesmo assim, há teimosos. Os que acendem vela em cada
esquina, os que distribuem sopão de madrugada, os que oferecem abrigo quando a
polícia desce o morro. Há também os que escrevem manifestos e os que os leem,
acreditando que a palavra ainda possa mover alguma coisa. Essas pessoas são a
febre, e também o remédio. São as que mantêm a respiração do Rio — ofegante,
mas viva.
À noite, fechei os olhos e tentei imaginar as 121 histórias
apagadas em um único dia. Cada uma delas era alguém com lembranças, uma risada
guardada, uma promessa quebrada. Penso nas mãos que ficaram sem o gesto diário
do “até logo”, ou no “perdeu mané”. Penso nos corredores de hospital que se
enchem de perguntas sem resposta. Penso no quanto é árduo existir num país onde
a morte se tornou assunto banal.
Escrever — dizem — é resistir à indiferença. Então escrevo.
Porque o silêncio, este sim, é cúmplice. E porque, talvez, o que o manifesto
pede — diálogo, paz, vida — comece de gestos miúdos como este: o de lembrar.
O Rio que mata também ama. É uma cidade bipolar: celebra de
dia, chora à noite, ou vice-versa. É mulher e ferida, é menino de boné jogando
bola na laje, é mar e um Cristo impotente de braços abertos sobre a linda
Guanabara. O pecado do Rio é nunca morrer completamente, mesmo quando parece
acabado. Sempre há uma música nova nascendo em algum canto: de frente para o
mar e de costa para o Brasil. Sempre há gente tentando viver.
Mas a beleza não pode mais servir de desculpa. A cada vez
que a cidade se encanta, o poder podre se aproveita. Enquanto se comemora o pôr
do sol no Arpoador, alguém lá no fundo do mapa está cavando uma cova rasa. A
geografia do encanto convive com a topografia da dor.
“Política de segurança pública se constrói com etapas
planejadas...”, dizia o manifesto. Talvez se construa também com decência e
escuta. Talvez o primeiro planejamento fosse simplesmente desistir da guerra.
Mas desistir exige coragem — e coragem, nesse país, falta mais que tudo.
Quem viverá para contar essa história? Os números ficam, mas
as vozes se perdem. É preciso escrever na areia, no muro, no jornal, no
coração. Que saibam, no futuro, que houve um dia em que o Rio chorou. Que
médicos, cientistas e cidadãos insistiram em dizer que vidas importam, mesmo
quando o Estado se comportava como máquina cega. Que alguém, na fumaça das
barricadas, parou para escutar o soluço de uma mãe. E que disso, dessa escuta,
nascia o começo de alguma humanidade.
De manhã, o sol volta. Sempre volta. Bate nas janelas
quebradas, nos tetos de zinco, nas faixas brancas erguidas em protesto. Nos
corpos enfileirados numa praça e largados para trás como lixo e estaca de um
palanque politico com cheiro de enxofre.
O Rio, cansado, toma seu café amargo e vai trabalhar. Fingindo que o dia
é apenas mais um. Mas há algo diferente no ar: talvez seja a fumaça da pólvora,
talvez a brisa da esperança. Porque mesmo ferida, a cidade é insistente — quer
viver.
Escrevo com a mão
tremendo, como quem sutura uma ferida imensa. Porque escrever é preciso; calar,
não.
O Rio, o país e o mundo estão doentes. Mas ainda respiram. E
enquanto respiram, há de haver quem sonhe com o impossível: uma segurança
pública que proteja, um governo que acolha em vez de ferir, e um povo que —
apesar de tudo — continue acreditando que paz é mais que palavra, e vida é mais
que sobrevivência.

O pior é que a raiz economica e material do narcotrafico continua intocado , com muito Poder ( Era uma vez na Faria Lima...). Obrigada pelo testemunho, sou uma testemumha da TV, surda.
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