Gaza, o escândalo da dor e os labirintos da identidade - compaixão versus acusação

 


Por Eduardo Gontijo 

Nenhum acontecimento recente expôs com tanta dramaticidade o abismo ético e moral da nossa época quanto as imagens de Gaza, transmitidas pelas redes sociais e pelos noticiários de TV: crianças com rostos e membros mutilados, mulheres implorando por água e por uma porção de comida, idosos tateando entre os escombros de moradias à procura de restos de familiares. A dor palestina, exibida em milhões de telas, parece ter reacendido – através de incontáveis manifestações em várias partes do mundo – aquilo que deve ser o núcleo ético e político mais antigo do homo sapiens — a compaixão – sem a qual nenhuma comunidade humana pode sobreviver.


“O rosto do outro me obriga”, escreveu Emmanuel Levinas – o maior filósofo judeu depois de Martin Buber – em sua obra Totalidade e Infinito. Para Levinas, não há nenhuma mediação ideológica nesse gesto ético inaugural, primordial. Antes de qualquer cálculo político ou racional, o rosto e olhar do outro nos convocam – pelo menos a grande parte da humanidade – a um apelo primordial, a uma espécie de responsabilidade originária. O rosto, os olhos do outro, carregam consigo um imperativo incondicional, sem necessidade de qualquer recurso à palavra: dizem, simplesmente, “não me mates”.

A compaixão, nesse sentido, não é um vago sentimentalismo; é a resposta originária à nossa própria vulnerabilidade, o sentimento que nos arranca da indiferença perante o outro e funda o humano. Segundo um dito frequentemente atribuído à antropóloga Margaret Mead, o primeiro sinal de humanidade nos achados arqueológicos seria um fêmur quebrado e cicatrizado, porque isso indicaria que alguém cuidou desse ferido – inútil para a sobrevivência do grupo – por um tempo suficiente para que o osso se regenerasse. Nesse gesto de nosso antepassado anônimo nascia a compaixão. E, com ela, a humanidade.

Mas o grande drama do presente, porém, é que, diante dessa resposta, ergue-se um contradiscurso poderoso: aquele que acusa a compaixão, que se manifesta em várias partes do mundo, de ser antissemitismo disfarçado. Essa inversão — na qual a sensibilidade moral e a compaixão pela dor alheia passam a ser suspeitas de ódio oculto — revela o quanto o discurso político contemporâneo se enreda nas feridas da identidade.

O antissemitismo é, com toda razão, carregado do peso de ter constituído um dos maiores horrores históricos perpetrados pela humanidade contra a própria humanidade.

Depois de Auschwitz, como recorda Hannah Arendt – também uma pensadora judia – o mal não pode mais ser pensado em termos abstratos; ele sempre tem rostos concretos, nomes, métodos, arquivos. Mas a memória do Holocausto – a ser sempre lembrada e jamais esquecida – cuja sacralidade repousa na defesa incondicional da dignidade humana, manifesta exemplarmente na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 – não pode nem deve ser instrumentalizada para silenciar a crítica à violência de um Estado.

Há uma profunda diferença moral e conceitual entre odiar o judeu por ser judeu — o que constitui o antissemitismo — e denunciar a devastação provocada por um governo concreto.

Confundir essas esferas é transformar o sofrimento histórico de um povo em escudo para políticas de dominação e de colonização. Judith Butler – grande pensadora judia da atualidade – em Caminhos Divergentes, adverte: “a memória judaica do exílio e da perseguição exige uma ética da coabitação”, não uma reafirmação de fronteiras que excluem o outro.

Amós Oz – o grande escritor judeu – por sua vez, insistiu em que o judaísmo não é apenas uma identidade, mas uma tradição de autocrítica moral.

Nessa linha, defender o direito de existência de Israel não pode significar a negação do direito de existência dos palestinos. A verdadeira herança de um povo que sobreviveu à perseguição deveria ser sempre a recusa de reproduzir a violência que o destruiu.

Em suma, a catástrofe humanitária em Gaza constitui, para a sensibilidade ética atual, um escândalo da razão e da consciência. As imagens de corpos infantis soterrados são tão insuportáveis, que tentar neutralizá-las com o discurso do “contexto”, do “direito à defesa”, da “guerra contra o terror”, converte-se em um escândalo da razão – se admitirmos que a razão, em sua mais profunda razão de ser, sempre se coloca contra a violência no mundo.

O que se joga, enfim, nesse deslocamento de sentidos, é o próprio sentido da humanidade: quando uma vida precisa justificar-se para ser digna de compaixão, a política já ultrapassou o limiar da barbárie.

A ação humana, recorda Hannah Arendt em seu livro A Condição Humana, é sempre imprevisível e irreversível, e por isso requer as virtudes de prometer e perdoar. Nenhum Estado pode se fundar apenas sobre a lógica da vingança, pois essa lógica dissolve a condição mesma da coexistência. Em Gaza, a vingança tornou-se uma gramática política: a cada morte, a promessa de mais mortes.

O que a compaixão, tão necessária à vida em comum, nos devolve, é a visão do singular — o rosto da criança, o corpo da mãe — contra o anonimato estatístico da guerra. Por isso, compadecer-se das vítimas palestinas não é negar a tragédia judaica, mas prolongar sua lição moral: que isso nunca mais se faça — a ninguém.

O que está em jogo nesse embate entre compaixão e acusação é o próprio destino da identidade como categoria moral e política. Amin Maalouf, em Identidades Assassinas, mostrou como as identidades, quando absolutizadas, deixam de ser refúgio para tornarem-se armas. Toda vez que um grupo define sua integridade pela exclusão do outro, ele repete, em espelho, a violência que o fundou. Ou, quando uma identidade se torna única, como ensinou Amartya Sen, em Identidade e Violência, ela se torna hostil a tudo que não é ela mesma.

Israel nasceu da memória de um trauma — o extermínio —, mas, ao se constituir em Estado judeu, de maioria judaica, ingressou na lógica do poder soberano, que exige muros, exércitos, fronteiras e inimigos. O trauma coletivo, não elaborado, pode ter-se degenerado, para muitos israelenses, numa política de medo, insegurança e suspeita permanente. É a transmutação da memória em dogma, e do medo em instrumento de governo.

A ética da alteridade, tanto em Levinas, como tantos outros pensadores atuais – como Amartya Sem, Amin Maalouf, Judith Butler, Alex Honneth, Martha Nussbaum, Hannah Arendt, etc – nos oferece o antídoto para essa cegueira: o eu só pode se constituir verdadeiramente diante do outro, jamais contra ele. Toda recusa da alteridade — seja ela palestina, árabe ou qualquer outra — é uma recusa da própria humanidade.

Neste mundo saturado de identitarismos, o ato de compadecer-se tornou-se um ato político urgente e absolutamente necessário. Ser capaz de sentir a dor do outro é hoje um desafio – e um dever – de coragem intelectual e espiritual.

Como escreveu Simone Weil – outra pensadora judaica – “a compaixão é uma forma de atenção pura, despojada de interesse e poder”. Ela não é sentimentalismo: é a forma ética da percepção, o olhar que reconhece a vulnerabilidade como comum.

Recusar-se a ver o sofrimento de Gaza é fechar os olhos à própria condição humana. E confundir a compaixão com antissemitismo é profanar tanto a memória judaica quanto o sofrimento palestino. Ambos pertencem ao mesmo horizonte da dor humana — aquele que a razão política não deveria jamais ousar hierarquizar.

A crise de Gaza não é apenas geopolítica; ela é espiritual. Ela interroga a humanidade e pergunta se ainda somos capazes de ver no rosto do outro um espelho de nós mesmos. Mas quando a compaixão se torna suspeita e a piedade é criminalizada, o mal ganha um novo disfarce — o da indiferença moral.

Relembrar Arendt, Levinas, Butler, Oz e Maalouf – e tantos outros pensadores judeus – é afirmar que a memória da Shoah, do Holocausto, não nos autoriza ao silêncio diante de Gaza: ela nos obriga a falar.

Porque a única lição universal de todos os sofrimentos é esta:

“Nenhum povo tem o direito de infringir a qualquer outro aquilo que não suportou em si mesmo.”

A compaixão pelo povo palestino em Gaza, longe de ser antissemitismo encoberto, é talvez o nome mais antigo e mais frágil daquilo que ainda nos torna humanos.

Comentários

  1. Artigo muito bom, esclarecedor e humano.

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  2. Muito bom. Foi no ponto

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  3. Maravilhoso! Parabens Eduardo, pela lucidez e coragem. Grande abraço.

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  4. Parabéns, Eduardo
    Lucidez, coragem e beleza no seu texto! Eu, Arminda, envio meu abraço fraterno!

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  5. Que reflexão extraordinária! Da mais profunda humanidade
    Um chamado à compaixão.

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  6. Texto excelente, Edu!
    Uma construção ética e, como tal, imparcial e necessária!
    Obrigada por essa tecitura tão, repito, necessária nesse momento!
    Um abraço

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  7. Texto super bem construído nos levando a refletir sobre diversos pontos de todo esse trauma que não precisava estar acontecendo.
    A humanidade está se desumanizando? Obrigada, Eduardo BP

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  8. Maravilhoso, professor Eduardo.

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