Como formar trumpistas... e bolsonaristas?

 


Um dos filósofos norte-americanos mais famosos da atualidade, Michael Sandel, diz que o fracasso do sonho americano de mobilidade social resultou em arrogância por parte da elite vencedora e em humilhação para a classe trabalhadora, produzindo grande ressentimento contra a globalização, as políticas de proteção social e a democracia. 

Segundo ele, esta frustração teria levado à divisão mais profunda na política estadunidense que é aquela entre pessoas com e sem formação universitária. Esta divisão teria originado o trumpismo e eleito Trump em 2016.

Em seu último livro “ A tirania do mérito - o que aconteceu com o bem comum?, Sandel mostra que nos Estados Unidos (e possivelmente em outras partes do mundo) nos últimos 40 anos a classe trabalhadora teve seu poder econômico estagnado, enquanto a elite econômica e intelectual aumentou enormemente sua riqueza, agravando a desigualdade social em todos os aspectos, especialmente na autoestima dos perdedores.

Segundo ele, o sonho americano da meritocracia, de que “se você se esforçar o bastante, poderá alcançar o máximo de suas potencialidades”, “seja qual for o ponto de partida de uma pessoa na vida, é possível ascender dos trapos à opulência”, “querer é poder”, “yes, we can!” se revelou cada vez mais falso à medida que as portas para a mudança de classe foram se fechando por causa da globalização, da automação, do neoliberalismo e da dificuldade de se obter um emprego de boa qualidade sem um diploma universitário.

A ideologia da meritocracia produz, de um lado, a arrogância dos vencedores (que acreditam que merecem o que possuem, desconsiderando todos os fatores que permitiram sua ascensão) e, do outro, a humilhação dos perdedores (que não tem ninguém a responsabilizar pela sua derrota a não ser a sua própria suposta incompetência).

Sandel é um democrata que não perdoa Obama, Clinton e outras lideranças democratas por ignorarem o crescimento da desigualdade econômica e por terem continuado e aprofundado o discurso meritocrata de Reagan e Tatcher, a ideologia justificou as políticas neoliberais desde a década de 80:

“Aceitaram o conceito Reagan-Tatcher de que os mecanismos de mercado são instrumentos básicos para alcançar o bem público. Mas queriam assegurar que mercados operassem sob condições justas. Todos os cidadãos, independentemente de raça ou classe, religião ou etnia, gênero ou orientação sexual, deveriam ser capazes de competir em igualdade pelas recompensas que o mercado concede. Para os liberais de centro-esquerda, igualdade de oportunidade exigia acesso à educação, assistência à saúde, cuidados infantis e outros serviços que permitem competir efetivamente no mercado de trabalho.” [i]

Por isso, a prioridade dos social democratas é em educação, educação e educação.[ii] Diz Sandel:

À medida que a desigualdade aumenta de forma constante, exigimos mais e mais do sistema educacional, buscando-o como expiação de outros pecados da sociedade”.

No entanto, não parece ser possível que toda a população tenha um diploma universitário (diplomados são 1/3 nos Estados Unidos e 11% no Brasil) e a competição “justa” pela via da educação não oferece verdadeira igualdade de oportunidades, pois as condições de classe na origem dos estudantes produz diferenças insuperáveis para a maioria deles, seja na entrada ou na saída da universidade. 

Além disso, mesmo quando 1/3 da população o consegue, o diploma estaria gerando uma minoria vencedora intelectual arrogante (convencida de seus méritos acadêmicos) e uma maioria de pessoas reduzidas em sua autoestima e cheias de ressentimento contra a academia (ver a raiva dos trumpistas e bolsonaristas contra a ciência e os intelectuais).

Vale a pena ler Sandel, especialmente sua análise profunda da meritocracia, do ponto de vista moral, religioso e histórico. Fiquei mais seguro de que ainda não estou ficando louco quando vi sua argumentação a favor do sorteio para a entrada na universidade e das cotas. 

Seu livro inspirou-me, inclusive, a criar o diálogo abaixo.


O republicano, o socialdemocrata e o socialista estão vendo uma corrida entre um rico e um pobre.

Republicano – Absolutamente justa! Quem chegar primeiro, merece!

Socialdemocrata – Discordo! Temos que melhorar as condições do pobre para que a competição seja justa!

Socialista – Para começar, aquele cara poderia descer dos ombros do outro e correr com as próprias pernas!


O “Tirania do mérito” é um bom livro – reformista. Ficou-me a pergunta: se democratizarmos a entrada na universidade, o capitalismo se tornaria justo? Sandel passa longe das características próprias do capitalismo, como a formação do lucro a partir da apropriação pelo capitalista de parte do valor gerado pelo trabalhador. Não seria este conflito entre as classes a principal fonte de ressentimento dos trabalhadores contra as elites neste processo de acumulação vertiginosa de capital durante os últimos 40 anos?

Finalmente, a análise de Michael Sandel se aplica ao Brasil e ao bolsonarismo?

O que acontece com a percepção da educação como saída para a desigualdade, quando apenas 11% dos brasileiros possuem um diploma universitário, provavelmente pessoas já pertencentes à elite antes mesmo de entrarem para a universidade? 

Nosso nível de exploração do trabalho é tão mais cruel e desumano que a universidade ainda estaria na categoria “luxo”?

O diploma universitário que oferecemos é nossa “solução” ideológica na corrida meritocrática para os brasileiros?

Colegas da academia, pensemos?










[i] Pagina 93 da edição brasileira de 2020


[ii] Disse Tony Blair em sua posse e Fernando Henrique Cardoso, o “nosso” Toni Blair, em um dos seus discursos.

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