O ser humano é inviável? – Resposta ao Millôr Fernandes



Há muitos anos ouvi o Millôr[1] dizer que “o ser humano é inviável”. Desde então esta frase de um dos meus ídolos intelectuais tem me intrigado, porque nunca tive certeza se ele estava fazendo uma brincadeira despretensiosa ou se sua afirmativa era resultado de longa experiência de vida e cultura, alguma verdade filosófica embalada pelo seu excelente humor. Tentei em vão decifrar se Millôr se referia ao ser humano enquanto espécie animal ou aquele ser idealizado nos sonhos humanistas ou a ambos.

Ao mesmo tempo, esta frase do Millôr me desafiava a concordar ou não com ela, obrigando-me a tentar conciliar numa única resposta as minhas múltiplas e antagônicas personalidades: o médico, o ativista político, o cientista e o cartunista. De um lado, como médico, tenho sido otimista por causa do desenvolvimento da ciência no conhecimento da natureza, que pode levar à cura das doenças e à diminuição do sofrimento humano. Também imbuído de esperança tem sido o meu posicionamento político de que é possível um mundo melhor e de que devemos agir eticamente para esta finalidade. Do outro lado da ambiguidade, sou também o cientista cético que adotou o pensamento evolutivo, cujo mecanismo da seleção natural não prevê finalidade nem sentido para a existência. No extremo, sou cartunista, um pessimista que usa o humor para disfarçar a visão trágica da existência humana.

Em outras palavras, a dúvida do Millôr nos remete à reflexão sobre a ideia de progresso da humanidade, princípio fundamental das diferentes concepções humanistas. No meu caso, a contradição entre a crença no progresso por meio dos caminhos socialistas (que adotei em função de minha formação cristã, humanista e marxista), em oposição à crença na ausência de progresso por causa da aleatoriedade da vida (decorrente do meu aprendizado científico da evolução por meio da seleção natural, sem um sentido predeterminado ou de progresso).

Depois de quase meio século, decidimos enfrentar a dúvida plantada pelo Millôr e nos últimos dias escrevemos um resumo do que aprendemos com o tempo e sobre os ombros de outros. Chegamos à conclusão de que há uma base evolutiva para a democracia inclusiva, ou seja, quanto maior for a diversidade (biológica e cultural) que conseguirmos atingir e nela conseguirmos conviver em igualdade de direitos, maior será a chance de que nossa espécie sobreviva por mais tempo às casualidades do ambiente.

Sim, Millôr, o ser humano pode ser viável por algum tempo.

Descrevemos a seguir o resultado da discussão que nós, o médico, o político, o cientista e o cartunista, realizamos para chegarmos a esta resposta.


A semelhança

O primeiro fundamento que nós aceitamos é de que todas as pessoas nascem iguais em seu potencial como seres humanos. Os bebês de pele negra, branca ou amarela possuem a mesma estrutura biológica para a inteligência, a criatividade, a capacidade de amar e odiar, as qualidades e defeitos morais, o altruísmo e o egoísmo, assim como o potencial para matar e para serem pacíficas.

Todas as crianças são também semelhantes em beleza ao nascer, pelo menos aos olhos de sua tribo, embora possam parecer mais apetitosos do que belos a uma onça faminta. Esta beleza dos primeiros dias é vital porque qualquer imperfeição física fora do padrão da espécie pode prenunciar problemas de sobrevivência para o bebê.

No entanto, mesmo fisicamente sem defeitos, nenhum bebê sobreviverá à falta da proteção de sua família, e sua família não irá muito longe sem uma tribo, e uma tribo não teria passado pelos gargalos evolutivos sem uma população de, pelo menos, alguns milhares de indivíduos. Em outras palavras, não existiríamos individualmente porque evoluímos como seres extremamente dependentes dos laços sociais que caracterizam nossa espécie. Nossa identidade se constitui no outro, diriam os psicanalistas, melhor, talvez, nos outros[2].

Embora nascidos semelhantes, ao longo da vida nos diferenciamos progressivamente devido a causas biológicas e sociais, desde as grandes determinantes ambientais até as trivialidades cotidianas[3]. A genética nos define em sexos diferentes e nos impõe seus tempos e ciclos inadiáveis como a infância, a adolescência, a vida adulta, o envelhecimento e a morte. A natureza também nos expõe às doenças, às intempéries, aos desastres naturais e às variações climáticas. A cada uma destas contingências físicas, às quais sobrevivemos, vamos nos modificando e incorporando as vivências e nos tornando pessoas com uma narrativa de vida, ou seja, seres históricos.

Além das mudanças biológicas, estamos sujeitos às condições sociais conformadas por forças econômicas e culturais. Por exemplo, a migração de um grupamento humano de caçadores coletores para uma região rica em precursores do trigo trouxe diferenças econômicas e culturais em relação a outro grupo que se deslocou para terras com precursores do milho. Os hábitos culturais de povos que domesticaram bois e cavalos foram diferentes daqueles que somente conheceram a lhama. As ferramentas daqueles que encontraram o ferro em seu caminho foram mais fortes do que os objetos daqueles que somente descobriram o cobre e, no longo prazo, todas estas circunstâncias fizeram a diferença entre ser um espanhol ou ser um inca[4]. Portanto, nossa existência é constituída pela história que vivemos individual e coletivamente.



A dessemelhança

Nós quatro também concordamos que, nascidas semelhantes, o conjunto das forças sociais e biológicas, incluindo a exclusiva recombinação dos genes herdados, tornam as pessoas absolutamente únicas em toda a humanidade diante da probabilidade remota de dois indivíduos compartilharem os mesmos genes e a mesma história biológica e social. O correr da vida nos transforma de bebês parecidos entre si em adultos dessemelhantes individualmente, até que a velhice nos encontre e nos dê a todos quase a mesma cara e rugas e ficamos meio parecidos novamente.

Dizer que os seres humanos são diferentes entre si por sua natureza biológica e histórica não significa que estamos dizendo que haja pessoas melhores e outras piores. As diferenças genéticas relativamente pequenas entre nós decorrem de adaptações evolutivas ao meio ambiente, de tal modo que, por exemplo, a pele negra permite a proteção do ácido fólico (uma substância essencial para o desenvolvimento do sistema nervoso do bebê) contra os raios solares excessivos tropicais, enquanto a pele branca permite maior síntese da Vitamina D (fundamental para o desenvolvimento dos ossos e outros sistemas orgânicos) quando exposta aos raios solares escassos na Europa[5]. Esta qualificação entre seres melhores e piores é tão absurda quanto dizer que um papagaio é melhor do que um tamanduá.

No entanto, apesar da originalidade individual, agimos e reagimos de forma estatisticamente semelhante a rebanhos, como bem sabem os pastores e sacerdotes, os marqueteiros, os governantes, a indústria de cigarros e de alimentos açucarados, os produtores de filmes em Hollywood e os fabricantes de smartfones e facebooks no Vale do Silício e na China. Apesar da individualidade histórica de cada um, assumimos coletivamente as atitudes das manadas, tanto mais estúpidas quanto maior a nossa insegurança, tanto mais manipuláveis quanto maior a nossa ignorância.

Este instinto grupal se manifesta quando estamos diante do estrangeiro na forma de uma sólida união entre os membros da tribo, acompanhada do equivalente ódio ao forasteiro, especialmente quando a farinha anda pouca e o pirão escasso. Neste momento, a mínima diferença na cor da pele, no sotaque ou no modo de pentear os cabelos é suficiente para justificar o genocídio. A xenofobia traz consigo sua irmã gêmea, a intolerância à diferença interna entre os próprios membros da tribo, forçando-nos a comportamentos estereotipados, como os rituais de uma tribo ianomâmi, os quais não são menos complexos e rígidos do que aqueles da realeza britânica. Em outras palavras, o lema tribal é “morte ao diferente”.



O instinto vital

Portanto, apesar dos laços de solidariedade grupal diante do inimigo externo, não reina a paz na intimidade da tribo, pois, além dos comportamentos hierarquizados, para sobrevivermos em meio às rígidas normas sociais do grupo somos profundamente competitivos pelo gênero de primeira necessidade humana que é o status social.

Desde bebês, da mesma forma que entre outras espécies de animais sociais[6], para preenchermos nosso instinto por status disputamos migalha a migalha qualquer pedacinho da matéria prima chamada tudo. Queremos toda a atenção e o leite materno, como se fôssemos o cuco que nasce primeiro e expulsa os outros ovos do ninho a pontapés[7]. Queremos todos os brinquedos, ainda que não possamos brincar com eles, toda a atenção da professora, o melhor lugar no ônibus, o melhor carro, a maior casa, a maior conta bancária. Freud se enganou, não desejamos sexualmente nossa mãe, mas o seu poder.

Este instinto atávico de luta individual pelo status social parece mais forte do que a fome, o sexo, e a própria morte, uma vez que preferimos morrer fisicamente do que sermos reduzidos na escala social. O jovem que se voluntaria para uma guerra é um triste exemplo do instinto de busca pelo status, pois o soldado se dispõe a passar fome, se abster de sexo e a morrer corporalmente para não fugir ao papel social que se espera dele e evitar ser chamado de covarde[8]. A busca pelo status molda nossas relações humanas, desde as mais antigas, quando não havia a propriedade privada (e a posse das mulheres constituía o símbolo mais evidente de poder[9]), até as mais sofisticadas redes sociais virtuais onde a falta de cliques nos selfies desencadeia crises de abstinência[10].

Esta competição permanente, em todas as suas formas, é um comportamento humano progressivamente valorizado como saudável, porque, segundo a ideologia dominante, seria preciso competir permanentemente para selecionar os melhores (uma distorção do conceito darwiniano da seleção natural) e assim melhorar a sociedade, uma ideia que se aproxima dos ideais de eugenia que nunca foram, de fato, vencidos na Segunda Guerra Mundial. O campeão de alguma coisa desenvolve a ilusão de que mereceu de fato o resultado da competição exclusivamente pelas suas qualidades pessoais, tanto quanto o ganhador na loteria. Até mesmo quando procuramos fazer o bem ao outro podemos nos confeitar com o pensamento de que ”nesse campo, ninguém é mais altruísta do que eu”. No entanto, o resultado prático e duradouro do espirito de competição permanente é aumentar a desigualdade entre as pessoas.

Em resumo, vivemos entre duas tensões permanentes: a necessidade de pertencimento ao grupo e a tendência inata para o individualismo. Simultaneamente semelhantes e diferentes, somos, tipo, diria nossa neta, seres quânticos.



A desigualdade

A incapacidade da sociedade de criar um mecanismo eficiente de mediação dos conflitos entre o interesse coletivo e o individual favorece o predomínio dos mais fortes e a concentração das riquezas em suas mãos. Mesmo com a criação do Estado, as classes mais ricas têm dominado sua estrutura, corrompendo os servidores públicos e conduzindo o funcionamento do Estado para a defesa dos seus interesses e privilégios.

Assim, a história da humanidade têm sido uma sequência de desigualdades sociais em maior ou menor grau, desde as os pequenos privilégios familiares nas vidas tribais até a astronômica diferença econômica atual, quando uma dezena de pessoas detém mais bens e propriedades do que a metade mais pobre da população mundial[11].

Quantas casas precisamos ter? Quantos carros precisamos comprar? Quantos sapatos? Claro que são perguntas retóricas, pois podemos usar apenas um destes bens a cada vez, mas elas trazem em si a dúvida sobre os limites da propriedade privada. O que seria justo ou necessário possuirmos? Um bilionário, destes que aparecem na revista Forbes, respondeu à pergunta sobre qual seria sua meta em termos de riqueza dizendo: Mais! Ou seja, ele revelou (e foi aplaudido) a compulsão pela competição econômica para possuir sempre mais, para ficar ainda mais rico, que resulta nos desequilíbrios do acúmulo de capital, cujos resultados nos levam a considerar normal que alguém possua mansões e bilhões de dólares, enquanto outras pessoas não têm alimentos ou onde morar.

A luta incessante e absoluta por bens e capital (além das necessidades básicas) se confunde com a busca mais profunda por status, pois não desejamos o dinheiro em si (mera convenção em torno de papel-moeda, hoje cada vez mais digital), mas procuramos o que poder financeiro parece prometer: evitar a morte. Quem sabe, se formos ricos o suficiente seremos imortais por causa do acesso que teremos aos melhores alimentos, moradia (incluindo abrigos anti-nucleares), roupas, medicamentos, proteção e novas tecnologias que evitarão o envelhecimento e a morte. No entanto, independentemente do tamanho da riqueza acumulada, todos morreremos um dia, anulando as vantagens individuais alcançadas, e deixaremos de herança para nossos filhos a fortuna (sem impostos no Brasil) e a neurose.

Em oposição a esta ganância individual, para controlar a concentração criminosa de riqueza a humanidade tem recorrido a propostas de aprimoramento contínuo do Estado como mediador dos conflitos e a tentativas socialistas mais extremas de redistribuição forçada da riqueza. Estas alternativas têm falhado por motivos diferentes, as reformadoras do Estado pelo parasitismo individualista das classes dominantes sobre a burocracia, levando à sua corrupção; as revolucionárias pela necessidade de imporem o totalitarismo coletivista com o consequente sufocamento da capacidade criativa dos indivíduos, levando à estagnação do Estado.



Desigualdade, violência e extinção

Diante do Estado incapaz de mediar os conflitos entre o individual e o coletivo, surge a desigualdade social e com ela violência entre os seres humanos, desde os níveis cotidianos até a ameaça nuclear. Aumenta a degradação do ambiente pela impotência do Estado em controlar as atividades predatórias das corporações que desprezam a preservação do bem coletivo. A falta de planejamento social do Estado dificulta o controle populacional, que gera mais demanda por alimentos e produtos, o que agrava a crise ambiental. Tudo conspira para que o atual ritmo de crescimento econômico mundial seja nosso principal desafio à sobrevivência humana, não apenas como espécie, mas, principalmente, como modo de vida baseado na civilização tecnológica e científica moderna.

Assim, do ponto de vista do planeta, quanto mais cedo ocorrer a extinção desta nossa espécie parasitária, melhor seria para as demais formas de vida (excetuando-se cães e gatos). Todas ficariam livres de nós e poderiam voltar à sua evolução natural.

Do nosso ponto de vista, no entanto, seria possível uma saída que conciliasse os interesses individuais e os coletivos para que sobrevivêssemos mais tempo?



Socialismo ou individualismo?
Uma vez que a natureza humana ambígua dificulta a extração de uma lição moral[12], de que forma deveríamos nos comportar para a sobrevivência da humanidade: predominando os interesses coletivistas ou os individualistas?

Os humanismos constituem as ideias iluministas que trouxeram para os seres humanos a responsabilidade de cuidarem de seus próprios destinos, depois que a crença nos paraísos celestes e nos deuses começou a perder força com o final da Idade Média[13]. Todos os humanismos se baseiam na ideia de progresso, ou seja, de que a humanidade deve seguir numa determinada direção para alcançar um novo paraíso, agora terreno. O humanismo igualitário possui origens luteranas e advoga que nossa salvação será alcançada por meio de soluções coletivas e resultou no socialismo e no comunismo. O humanismo individualista possui origens calvinistas e defende propostas individualistas e liberais, e resultou no capitalismo[14]. Uma terceira linha de pensamento acredita que o progresso ocorreria somente a partir do aprimoramento das supostas raças humanas, o que deu origem à impiedosa marcha da eugenia nazista, agora rearmada com novas tecnologias genéticas, que busca a criação de uma “super-raça” modificando as características genômicas da nossa espécie[15].

No entanto, a própria ideia iluminista de progresso da humanidade vem sendo questionada de muitas maneiras, em virtude dos efeitos colaterais do desenvolvimento da civilização, como a degradação do ambiente[16], a corrida armamentista e sua ameaça nuclear, a superpopulação mundial, a desigualdade social e econômica, as doenças da modernidade, as guerras e o terrorismo[17]. A incerteza da existência do progresso associada à nossa ambiguidade natural entre o coletivo e o individual dificultam a percepção de uma base “natural” para dela extrairmos o que seria moralmente correto no comportamento humano.

Desprovido de um sentido evidente de progresso, o futuro se afigura então como o resultado dos efeitos do acaso sobre a história humana, formada por uma população de seres tensionados entre o ideal coletivo e o individual. Neste contexto, a duração e as características da humanidade dependerão da interação entre a casualidade ambiental e a nossa capacidade de equacionarmos o bem coletivo com o individual.

Lembrando que todas as espécies se extinguem num dado momento, talvez o ser humano seja tão mais viável (duradouro) quanto mais formos capazes de construir uma sociedade que permita ao indivíduo se afirmar no coletivo sem destruir os laços sociais, enquanto o coletivo definiria os interesses sociais como limites ao indivíduo sem destruir a sua identidade. E juntos nos adaptaríamos às mudanças ambientais.

Portanto, há uma base evolutiva para a democracia inclusiva, ou seja, quanto maior a diversidade (biológica e cultural) maior a chance de que nossa espécie sobreviva às casualidades futuras. Não dizemos a democracia majoritária, na qual a metade mais um impõe sua vontade aos demais, mas a democracia inclusive é aquela em que todos os interesses sejam conciliados e respeitados.

A democracia inclusiva é justamente o contrário dos modelos atuais autoritários (ainda que legitimados pelo voto), hegemônicos, machistas, elitistas, monopolistas, baseados na força física e ideológica e na coerção e exclusão do diferente. A democracia inclusiva é o oposto das ideias de raça pura, de superioridade racial ou cultural, de domínio e exploração da natureza sem limites, de opressão do mais fraco pela guerra, da escravidão e da exploração econômica desumana.

Ao contrário das ideias de supremacia racial, na seleção natural, em todas as espécies é a variabilidade genética (e no nosso caso também cultural) e o tamanho da população que permitem a sua sobrevivência por mais ou menos tempo. Interessante lembrar que a única ilustração realizada por Charles Darwin em seu “Origem das espécies” é justamente sobre a probabilidade de sobrevivência de diferentes variantes (abaixo).

Figura desenhada por Charles Darwin, à qual ele adicionou a expressão “I think”, segundo meu amigo e cientista Romeu Guimarães. Ela mostra vária gerações de variantes de uma mesma espécie que apresentam durabilidades diferentes em função de fatores aleatórios no ambiente e do tamanho da população. Para maiores explicações, ver o texto na última edição brasileira[18].



A sociedade “quântica” ou multiculturalista

Uma sociedade assim formada, numa busca permanente do equilíbrio entre o coletivo e o individual, teria mais chances de enfrentar as adversidades inevitáveis do planeta no qual habitamos[19] assim como controlar e sobreviver à degradação do ambiente provocada pela nossa própria espécie.

Ao contrário, tanto uma sociedade humana muito desviada no sentido individualista correria o risco de não possuir coesão social suficiente para enfrentar as mudanças ambientais, quanto o desvio excessivo no sentido coletivista poderia impedir a individualidade e exterminar a variação (genética e cultural) que é a fonte das novas soluções e da sobrevivência.

Esta conformação equilibrada entre o coletivo e o individual significa dar proteção aos direitos individuais para que todas as pessoas atinjam seu potencial humano ao nascimento. Para o seu desenvolvimento humano pleno algumas pessoas precisam de mais cuidados do que outras, como as crianças, gestantes, mulheres, idosos, doentes, portadores de necessidades especiais, refugiados, minorias étnicas, dependentes de comida fast-food, de cigarros, de álcool, e do facebook.

Esta conformação equilibrada entre o coletivo e o individual também buscaria o bem-estar de todos impondo limites ao enriquecimento individual, impedindo o monopólio dos meios de comunicação, dos alimentos, da religião, dos frigoríficos, da mineração, do ensino, dos transportes e do Google, por exemplo.



Temos futuro?

As sociedades humanas têm sido desiguais no passado e no presente, mas precisam obrigatoriamente continuar sendo no futuro? Por exemplo, ser dono de escravos já foi uma virtude da aristocracia (inclusive dos reinventores[20] europeus e norte-americanos da democracia) e o comércio de escravos um rendoso investimento de pacatos cidadãos ingleses de classe média, mas hoje é um crime, pelo menos fora dos latifúndios da Amazônia.

Pensar que a desigualdade pode ser revertida no futuro é um pensamento chamado progressista, que acredita que a humanidade caminha para uma situação melhor, apesar do resfriamento previsto do sol, no final das contas.

Quem sabe a humanidade um dia irá para o divã da neurociência e descobrirá um antídoto para o veneno do medo da morte e deixaremos de nos iludir com a riqueza e o status social como salvação para nossa animalidade antológica?

Uma sociedade multiculturalista, resultante da democracia inclusiva, parece-nos que seria mais igualitária do ponto de vista econômico, mas esta é uma pergunta que precisamos responder de forma mais objetiva[21].



Conclusão

Parece-nos aos quatro (o médico, o político, o cientista e o cartunista) que não há conflito entre nossas visões darwiniana (da seleção natural) e nossas esperanças humanistas (de que possamos construir uma sociedade humana mais feliz), porque há uma base evolutiva para a democracia inclusiva, ou seja, quanto maior a diversidade (biológica e cultural) maior a chance de que nossa espécie sobreviva por mais tempo às casualidades do ambiente.

Sim, Millôr, concluímos (por maioria simples) que o ser humano biológico e cultural pode ser viável, por algum tempo, se conseguirmos a façanha de implantarmos a democracia inclusiva.



Agradecimento

Sou grato às leituras e sugestões feitas pessoalmente pela Thalma e, por escrito, pelos amigos Romeu Guimarães e Ramon Cosenza (ver abaixo), que melhoraram minha compreensão do que foi escrito.

Thalma teve a impressão de que dois temas diferentes foram abordados (a dissociação entre os três personagens e a democracia inclusiva) e que houve repetição de ideias em relação a textos meus anteriores. Concordo com ela e me parece inevitável repetir temas importantes sobre os quais nunca paramos de pensar.

Lembro que escrevi, como ambos sabem, movido pela necessidade de paz interior e não pretendia apresentar uma ideia original de forma acabada. Penso que expor o que vamos pensando aos amigos é a forma real de pensar (refletindo-nos nos outros), mais do que se eu ficasse tentando, sozinho, achar a perfeição dos conceitos para depois publicá-los.

Abaixo reproduzo partes editadas dos e-mails do Romeu.

“Você já sabe, mas é bom esclarecer ainda mais. O humano é misto de biologia e cultura. Os preceitos da evolução biológica podem até servir de inspiração, mas não são, em si, extrapoláveis para o da evolução cultural. Precisa muito equilíbrio para navegar nessa 'dialética'. Todos tentamos, mas não é fácil encontrar boa balança. Em certo sentido, o da nossa dependência do corpo, estamos submetidos à lei biológica da mortalidade individual e do futuro incerto e não progressista. Em outro sentido, o da cultura, acho que temos pleno direito de sonhar, artezanar e artistar, o que é talvez plenamente não-biológico(?). Perplexidade de que muito da biologia só nos confunde.

Parecer-nos-ia que a sexualidade, tão importante, deveria ser mais fixada biologicamente, mas não o é. Plantas têm múltiplas e variáveis e intercambiáveis sexualidades superpostas e concomitantes, no espaço e no tempo. Peixes trocam de sexo com certa frequência ao longo da vida. Répteis (tão perto dos outros quadrúpedes não-rastejantes) botam os ovos e o sexo predominante da ninhada será definido pela temperatura na incubação, que é definida pela Terra e Sol, não pela constituição da espécie...e por aí vai. Mutabilidade mil. ”

Na escala etológica, somos classificados como sub-sociais. Os eu-sociais são os himenópteros. Sociais sob pressão da fragilidade individual e necessidade dos cuidados sociais. Daí a tamanha conflituosa indecidibilidade.

Ecologia é unicamente humana. Não há mecanismos para cuidados com o ambiente em nossas constituições. No máximo, quando o ambiente piora ou entope ou satura, encistamos ou hibernamos. Nos casos onde há aparente equilíbrio, este é ecossistêmico, por pressão da convivência obrigatória com outras espécies em que, por adaptação evolutiva prolongada, aprendeu-se. Mas, mesmo nesses casos, se se retira um nó da rede ecossistêmica, volta o problema da incapacidade ecológica e os desequilíbrios.

Só achei interessante porque é caráter muito utilizado pelos leigos para dizer sobre as 'perfeições' na natureza. Observa-se como tudo parece 'se encaixar' direitinho, especialmente nas interdependências dentro dos ecossistemas. Eu disse que 'não há mecanismos para cuidados com o ambiente' nas constituições biológicas. Parece que só há o mandato de 'crescer e multiplicar', o que gera mil problemas ecológicos ao longo do tempo evolutivo todo. Não há precauções. Só se percebe que alguns organismos desenvolveram as habilidades de produzir 'formas de resistência' quando percebem condições adversas, como encistamentos, esporulação, dormência, hibernação etc. Os ecossistemas se fizeram ao longo do tempo evolutivo 'sob pressão' das adaptações, assim como parece ter sido o ocorrido com nossa espécie que, 'sob pressão', desenvolveu as habilidades sociais, inclusive a linguagem.

Gostei do termo democracia inclusiva, que não conhecia, parece sinônimo do multiculturalismo. (Resposta do LOR: Lancei mão deste termo para diferenciar um pouco do multiculturalismo, o qual me parece mais uma aceitação passiva das culturas sem uma efetiva participação decisória de todas as variantes culturais no destino coletivo).

Bons são os ícones darwinianos. O seu desenho de uma árvore evolutiva pequenina e rústica, que domina toda a biologia hoje. E uma pequena anotação rabiscada ao lado da arvorezinha 'I think'. 


A seguir, os comentários do Ramon Cosenza.


Prezado Lor

Li com interesse a sua resposta ao Millor. Concordo com a maior parte do seu texto, que é um resumo adequado da trajetória humana, embora haja um certo viés, acredito, para o ser humano ocidental, dentro de uma sociedade capitalista.

Mas não compartilho com você, principalmente, da conclusão final.

A democracia inclusiva é uma abstração, algo que não existe na prática e que, embora possa vir a ser possível, seria o trabalho de um grande número de gerações, empregando com afinco o uso do processamento cognitivo do tipo 2. Sabemos que isso tem pouca probabilidade de ocorrer.

Além disso, e mais importante, não dispomos provavelmente do tempo necessário. Estamos exaurindo os recursos do planeta e os especialistas calculam, por exemplo, que o solo fértil disponível daria apenas para cerca de sessenta novas colheitas. Esse é somente um exemplo, pois existem muitos outros sinais alarmantes, que não estão sendo levados em conta por nossa irracional espécie.

Konrad Lorenz, um dos criadores da ciência da etologia, dizia que o homem conseguiu, com a ciência e a tecnologia, fugir dos efeitos da evolução biológica, mas ainda está sujeito à evolução cultural, que é muito mais rápida. Na evolução biológica, as modificações ocorrem em um ritmo em que as mutações disponíveis podem eventualmente contrapor-se a uma ameaça que surge e a sobrevivência da espécie fica garantida. Na evolução cultural, não existe tempo hábil para que uma mutação (como o surgimento da democracia inclusiva) possa garantir a sobrevivência de nossa espécie.

Portanto, acho que o ativista político, muito otimista, conseguiu convencer os outros três (o médico, o cientista e o cartunista) de que uma saída está disponível. Eu continuo muito cético.

Grande abraço,
Ramon


Resposta LOR:

Amigo Ramon, que alegria saber que você leu o texto! Obrigado por me fazer sentir acolhido.

Acho sua discordância muito lúcida (e assustadora para o ativista político, em especial). Você tem razão, ele convenceu os demais (apesar de um dos votos ter sido de discordância - o cartunista?)

No entanto, parece-me que a minha não chegou a ser uma conclusão otimista, pois há um condicionante: sobreviveremos um pouco mais SE conseguirmos implantar a mutação cultural chamada democracia inclusiva (adorei sua percepção da essência mutacional desta ideia).

Notas

[1] Ainda não havia me ocorrido que já existe uma geração de brasileiros que não sabem quem foi Millôr Fernandes. Ele nasceu em 1923 e faleceu em 2012, foi cartunista, humorista, tradutor, escritor e dramaturgo. Foi um grande pensador e crítico da ditadura militar. Escreveu nas revistas "O Cruzeiro e "O Pasquim" e “Veja”. Millôr dizia que ele era mil vezes melhor do que eu como cartunista: Mil-Lor.


[2] Ver como Descartes estava errado, pois somente existimos nos outros: https://aeon.co/ideas/descartes-was-wrong-a-person-is-a-person-through-other-persons?utm_source=Aeon+Newsletter&utm_campaign=5758f4cff2-EMAIL_CAMPAIGN_2017_12_18&utm_medium=email&utm_term=0_411a82e59d-5758f4cff2-69554237


[3] Ver o livro “As gêmeas que ficaram diferentes”, Alice e Lor, 2017: https://www.infancia.com.br/products/as-gemeas-que-ficaram-diferente


[4] Jared Diamond descreve esta evolução social em seu famoso “Armas, Germes e Aço”, de 1997.


[5] Ver as publicações científicas de Nina Jablonsky e sua mais recente revisão: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/22441067


[6] Romeu Guimarães lembra que na escala etológica, somos classificados como sub-sociais. Os eu-sociais são os himenópteros. Sociais sob pressão da fragilidade individual e necessidade dos cuidados sociais.


[7] Mais detalhes sobre os cucos em “O gene egoísta” de Richard Dawkins, 1976.


[8] Ver o excelente filme e primeiro Oscar do cinema: “Nada de novo no front”, de 1939.


[9] Ver “Nobres selvagens” de Napoleon Chagnon, 2013.


[10] Ver relação entre estados psicológicos e o Facebook https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3806432/


[11] Ver “O capital no Século XXI” de Thomas Pikkety, 2013.


[12] Ver o filósofo Ronnie de Sousa sobre a impossibilidade de extrairmos noções éticas da natureza em https://aeon.co/essays/how-evolutionary-biology-makes-everyone-an-existentialist?utm_source=Aeon+Newsletter&utm_campaign=0125b3026b-EMAIL_CAMPAIGN_2017_12_18&utm_medium=email&utm_term=0_411a82e59d-0125b3026b-69554237


[13] Ver um dos livros mais vendidos no mundo de Yuval Noah Harari: “Sapiens”, 2012.


[14] Ver o livro de Domenico de Masi, “O futuro chegou”, 2014.


[15] Ver o livro de Yuval Noah Harari, em “Homo deus”, 2015


[16] Ver Elizabeth Kolbert: “A sexta extinção”, 2014.


[17] Ver “O futuro não é mais o que era” de Adauto Novaes, 2012.


[18] A origem das espécies”, Charles Darwin, Editora Martin Claret, 2014, quinta reimpressão 2017.


[19] Ver como a mudança climática pode ter contribuído para a queda do Império Romano: https://aeon.co/ideas/how-climate-change-and-disease-helped-the-fall-of-rome


[20] As primeiras ideias iluministas foram propostas por Zera Yacob (1599-1692), um filósofo etíope trezentos anos antes: ver https://aeon.co/essays/yacob-and-amo-africas-precursors-to-locke-hume-and-kant?utm_source=Aeon+Newsletter&utm_campaign=a17e2cec9a-EMAIL_CAMPAIGN_2017_12_11&utm_medium=email&utm_term=0_411a82e59d-a17e2cec9a-69554237


[21] Ver os novos indicadores para esta questão em: https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2017/Multiculturalismo-gera-desigualdade

Comentários

Mais visitadas

A última aula do Professor Enio

Machistas graças a deus

Querido Ziraldo