O átomo otimista
Para o Paulo Roberto Vaz de
Melo
Apesar de ser quase impossível mudar nossa posição de
nascimento no círculo do poder social (aquele dos refugiados canadenses, que
apresentei no meu último post), o mito de que posso escolher meu destino é
fundamental para sobrevivermos na sociedade atual.
Fui educado para me sentir responsável pelos meus atos e não
consigo aceitar essa ideia que nada posso fazer para alterar o rumo dos acontecimentos, no
mínimo da minha vida pessoal. É possível ficar imóvel à espera dos
acontecimentos? De nada adianta querer melhorar minhas relações afetivas e
profissionais? Seria inútil tentar fazer algo pela utopia da democracia?
Apesar das evidências do passado, que demonstram que os principais
acontecimentos em minha vida foram profundamente influenciados pelo acaso e por
fatores que não dependeram de minhas escolhas conscientes, vivo num sistema
social fundado na possibilidade de escolhas, o tal livre arbítrio.
As crenças religiosas, o sistema jurídico, nossa
responsabilidade civil e criminal, nossas relações afetivas, enfim, todo o
complexo sistema de méritos e culpas que formam a estrutura de nossa sociedade
exige que cada um de nós seja absolutamente responsável pelos seus atos, imputável.
Daí somos inseridos na meritocracia, essa subjetividade
coletiva que estabelece que merecemos aquilo que nos acontece, de bom ou de
ruim. Quando esta ideia é aplicada à extrema desigualdade de renda, ela
justifica a existência de ricos e pobres. Ou seja, a meritocracia é pedra
fundamental da ideologia capitalista. que serve para ocultar a fonte real da
riqueza, que é a exploração realizada pelos donos do capital de forma
compulsória sobre outros seres humanos e o ambiente.
Por exemplo, acreditamos que a Europa se desenvolveu economicamente
porque sua população branca foi mais inteligente e trabalhadora do
que os povos da periferia, portanto, mereceu a acumulação de riquezas que
deu origem ao capitalismo, o qual se espalhou de forma dominante e desigual sobre
o mundo.
Outro exemplo, acreditamos que o mendigo que acaba de bater
na minha porta, um homem negro de uns 60 anos, com dor crônica depois de
trabalhar décadas nas minerações (ele não me pede dinheiro, mas dipirona), deve
ter escolhido sua vida sofrida como trabalhador braçal para acabar
desempregado e na miséria, então ele merece o fim que está tendo.
Além disso, para agravar minha impotência, quando o sistema capitalista inventou a corporação, a tal pessoa jurídica, foi criado um algoritmo “lucrar sempre e mais” que, depois de acionado, hoje independe da vontade humana dos capitalistas, portanto, não pode mais ser desativado, nem pelos Musks e Trumps, mesmo que o quisessem.
Portanto, se minhas condições de nascimento, o momento
histórico, o acaso e o algoritmo do capitalismo não me permitem escolher os
caminhos de minha própria vida, por consequência, seria ainda mais difícil qualquer
pessoa tentar modificar este sistema social injusto.
Essa constatação de que não tenho livre arbítrio faz-me
sentir como aquele átomo de silício, que faz parte de um chip num
computador e que é ativado toda vez que o estímulo elétrico passa por ele ao
rodar o algoritmo.
No entanto, ele é um átomo rebelde que, usando sua
propriedade quântica da incerteza, tenta atrapalhar o algoritmo do lucro de
alguma forma, desviando alguns elétrons para o feminismo, concentrando energia
contra o racismo, deixando de comer carne para evitar o desmatamento, não votando
nos bolsonaros ou gente parecida, não usando combustíveis fósseis, não
participando de competições, não consumindo sem necessidade, apoiando a reforma
agrária e a democracia, além de várias atividades de organização da sociedade civil.
Sim, diria o filósofo Kadiwéu Gu Ê Krig: “a guerra está
perdida, mas as batalhas ainda não!”
Sei que átomos rebeldes ainda somos minoria e talvez sejamos
descartados como areia comum pelo algoritmo capitalista, mas por enquanto vou admitir que tenho algum grau de escolha, nem que seja para torcer – e sempre – para
que, em algum momento, sejamos contemplados com o lado mais bonito de um
punhado de dados que foram lançados aleatoriamente pelo Universo.
👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼
ResponderExcluir