O mendigo e a Ucrânia

 


O ex-jardineiro tocou o interfone pela manhã, alguns minutos depois que eu soube da invasão da Ucrânia pela Rússia. Com a voz embargada pelo álcool, pediu-me dez reais para comprar um botijão de gás, solicitação cada vez mais frequente nos últimos meses em que a crise econômica brasileira foi agravada pela pandemia de COVID.

José é um homem negro de meia idade, que aumentou a bebida na mesma medida em que viu diminuir sua oportunidade de trabalho, e que aparece no meu portão dia sim, dia não, com a mesma frase: - Oh, meu amigo...

Atender a porta e encontrar o José é sempre um momento de conflito interior e tristeza para mim, pois não consigo evitar de me colocar na posição dele, encostado nas grades à espera da resposta, - chego a me ver pelos olhos dele - e fico imaginando como deve ser a vida de alguém na sua idade, que precisa andar pelas ruas de porta em porta pedindo esmolas. Repenso que, certamente, ele não escolheu sua situação social precária, tanto quanto eu não escolhi a minha, de classe média privilegiada. Sua presença reaviva meu ódio ao capitalismo, que, para existir precisa que haja desempregados, o famoso exército de mão de obra de reserva, para manter os salários baixos e os lucros altos. Tristeza, raiva e a impotência natural aos 73 anos, desperta o conhecido 
toque do José no interfone.

Com a convicção de que deveria respeitar sua dignidade, houve época em que evitei dar a esmola, pagando a ele por pequenos trabalhos, como cortar a grama e esvaziar o sótão; noutra hora, supondo que deveria respeitar sua autonomia, dei o dinheiro que me pedia, não me dizendo respeito se fosse usado para comprar o álcool sedativo para sua dor; depois, achando que poderia estar contribuindo para o agravamento do seu alcoolismo e violência doméstica, tentei combinar com ele que lhe daria uma cesta básica, que seria dividida em partes entregues aos sábados.

Não está adiantando: dia sim, dia não, ele toca o interfone e parece muito surpreso quando digo que ainda não é sábado e que havíamos combinado apenas aos sábados... Sua expressão de perplexidade seguida de sua concordância silenciosa me comovem. Não sei o que fazer para ajudar o José, dentro de minhas possibilidades, porque mais três mendigos passam semanalmente por aqui para buscar sua cesta básica, além de eventuais pedintes avulsos (um deles, um rapaz, aparentando ser travesti, magérrimo, que me chama de querido e pede sempre, e apenas, oito reais para tomar um banho na estação rodoviária).

Hoje, antevendo que a invasão da Ucrânia irá aumentar ainda mais o preço do botijão de gás, quebrei a promessa de doar ao José os gêneros de primeira necessidade somente aos sábados. Hoje, rendi-me à irracionalidade do mundo como um soldado do exército ucraniano em sua inferioridade brutal diante do nacional-capitalismo russo, e dei os dez reais que o José pediu.



Lor 24/2/2022

Ps: Lideranças petistas com viés stalinista estão apoiando a Rússia - até aí, sem novidades!
Mas PSOL entrar nessa, acabo de me desfiliar!

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