Há vacina contra a ilusão?

 

É fácil para uma pessoa que estudou biologia compreender como funcionam as vacinas e por que elas são a principal forma disponível de controle das doenças virais agudas, como a COVID.

Mas, para muita gente, é difícil entender como o organismo reage quando é introduzido nele um vírus inativado ou um fragmento deste vírus, ou seja, uma vacina. Talvez, aceitar ou não a eficiência da vacina, para boa parte da população, dependa menos do entendimento biológico e mais da confiança que é depositada nas orientações das autoridades sanitárias, formadas por técnicos, médicos e cientistas, que fazem parte das estruturas do Estado.



O Estado, controlado pela classe dominante ao longo da história, hoje administra a produção capitalista, garantindo a propriedade privada dos meios de produção e a manutenção da ordem social no contexto da desigualdade extrema em que precisa viver a população para os salários serem mantidos baixos e haver lucro. Entre as funções do Estado, está a formação de quadros operários, com educação básica para a mão de obra, e um corpo técnico capaz de gerenciar o desenvolvimento tecnológico para o aumento da produção de riquezas e lucro pelos donos do capital.




A classe trabalhadora e os desempregados desconfiam que este Estado cooptado pela burguesia não merece a sua confiança, pois não é destinado ao seu bem estar e sim à sua subjugação. Quem nas favelas acredita que a polícia irá investigar a fundo um determinado crime, especialmente se a vítima for uma mulher, negra e pobre? Quem na periferia tem certeza que terá uma aposentadoria com dignidade?

A classe trabalhadora sabe que cada lei de proteção social deve ser arrancada com muita luta das mãos dos patrões. Uma destas conquistas foi o Sistema Único de Saúde, um programa de saúde pública permanentemente boicotado pela classe dominante desde a Constituinte de 1988. Apesar da difamação e subfinanciamento, o SUS tem merecido a confiança da população mais pobre, que se reflete na sua adesão aos programas de vacinação, incluindo contra a COVID (aqueles 70% que já se vacinaram).

Na luta entre o mar e a pedra, o caranguejo técnico e gerencial, a classe média (e médica), uma hora vai para um lado, por exemplo, durante sua felicidade consumista na época das vacas gordas dos governos do PT, noutra hora se afoga no desespero da crise econômica capitalista e adere ao bolsonarismo, que acima de tudo é uma ideologia do “reconheça seu lugar e saiba com quem está falando”. Ou seja, uma tentativa da classe média de se afastar da proletarização e empobrecimento para não virar classe trabalhadora.

É esta classe média oscilante que realiza a intermediação ideológica entre o poder da classe dominante e a realidade dos trabalhadores. É ela que propaga evangelicamente que todos podem se tornar ricos pela educação, que a meritocracia existe e todos seremos um dia Jeff Bezzos de sucesso.




Mas a classe média também é constitucionalmente dividida ideologicamente: uma parte se identifica profundamente com os ricos e outra reconhece que quem está fora dos 1% mais ricos são todos trabalhadores e explorados.

Desde a crise econômica de 2008, a divisão na classe média se agravou diante da progressiva descrença na capacidade do Estado de atender suas necessidades, uma desconfiança que abrange os governantes, políticos, sistema judiciário e, consequentemente, as autoridades sanitárias. A falta de credibilidade se estende às universidades, cientistas e meios de comunicação.

Nesta insegurança, parte da classe média vai se tornando desesperadamente individualista, aumentando o esgarçamento da confiança recíproca entre as pessoas. Por exemplo, cada vez mais ela acha injusto pagar impostos, ignorando que isto significa contribuir para o bem coletivo e para o bom funcionamento do Estado. Quem for capaz de sonegar impostos com baixo risco de punição, o faz sem o menor remorso. Basta ver os painéis contadores de impostos colocados em várias partes do Brasil.

Da macro economia ao corriqueiro cotidiano, a ideologia da parte bolsonarista da classe média promove a desconstrução das normas coletivas. Não confia nas placas de trânsito e desrespeita a velocidade limite determinada por equipes técnicas em benefício de todos, e cria sistemas obscuros para questionar na justiça uma eventual multa que tenha recebido. Não acredita que os radares são colocados nas rodovias para o benefício de todos, mas porque existe uma “indústria da multa”. Basta lembrar que uma das primeiras medidas de governo do Bolsonaro foi tentar acabar com os radares rodoviários.

Pressionada pelos preços, a classe média opta pelos medicamentos genéricos com medo de estar sendo enganada pelos fabricantes, mas não reage contra os laboratórios multinacionais. Ingere alimentos industrializados mesmo apavorada com dezenas de ingredientes que não tem a menor noção do que significam, mas não reage contra o agronegócio.

A classe média desconfia da integridade e isenção jornalísticas quando a notícia do telejornal prejudica a imagem do político que admira, mas aceita a publicidade descaradamente mentirosa, sem pestanejar.

A classe média, que acabou de comprar seu carro potente e esbanjador de gás carbônico, não pode crer no cientista que apresenta uma perspectiva ambiental sombria para as próximas décadas por causa do aquecimento do planeta causado pela industrialização capitalista.

Os pais de classe média querem mandar as crianças para a escola antes de estarem todas estarem vacinadas, mesmo depois de ouvir os argumentos epidemiológicos dos cientistas e trabalhadores no ensino, de que precisamos de vacinar todas elas para sua segurança e para controlarmos um dia a pandemia.

Por fim, a classe média confia nos médicos de forma seletiva: aceita, sem hesitar, uma endoscopia indicada pelo médico do plano de saúde, mas se recusa a vacinar as crianças contra a COVID, porque outro médico diz, sem qualquer prova científica, que a vacina apresenta mais risco do que benefícios para as crianças.

Em resumo, uma parte da classe média não confia na democracia, o que inclui o SUS, a ciência e o espírito coletivo, pois se acha na fila do Vivendas da Barra do 1% mais rico.






É essa a turma dos 20% que se opõem à vacinação e atrasam o fim da pandemia.

Há vacina contra a ilusão causada pela cegueira ideológica?

 

Lor

Fevereiro 2022

 


Comentários

  1. Em uma pandemia, o coletivo supera o individualismo. Quando as pessoas entenderem esse axioma científico, serão superados o fanatismo político e a divisão de classes

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