A meritocracia novamente
Num dos primeiros anos deste século, participei de uma comissão na UFMG para distribuir bolsas de iniciação científica. Para quem não sabe, esta bolsa é o primeiro e fundamental passo para a formação de cientistas, o começo da carreira da maioria dos pesquisadores, um divisor de águas na vida de uma pessoa na universidade.
Como habitualmente, havia mais projetos de pesquisa apresentados pelos professores do que bolsas disponíveis para seus alunos interessados, e pelas regras seriam contemplados aqueles cientistas que tivessem o melhor currículo, basicamente as pessoas que produziam mais artigos em revistas científicas internacionais.
Desta forma, um professor que já possuía uma linha de pesquisa bem estruturada, com várias alunas e alunos de pós graduação, produzia mais publicações do que uma pessoa iniciante na docência e na pesquisa. O resultado deste critério, em geral, fazia com que aqueles mais antigos, mais experientes ou com maior financiamento, que já contavam, inclusive, com outros bolsistas de iniciação científica, recebessem novas bolsas, ampliando sua capacidade de produzir publicações, num ciclo que vinha sendo repetido ao longo dos anos. Por isso, aqueles pesquisadores que estavam iniciando a carreira científica enfrentavam grande dificuldade para desenvolver seus projetos, perpetuando a desigualdade entre o corpo docente [i] .
Propus então que utilizássemos um critério mais democrático, que permitisse o desenvolvimento de outras pessoas e grupos, que aumentasse a diversidade na universidade, com a qual, supunha, reduziríamos nossa desigualdade e cresceríamos todos. Sugeri que todos os projetos de pesquisa submetidos à nossa comissão seriam avaliados quanto ao seu conteúdo, se o tema era relevante, se o método estava bem imaginado e se era viável.
Todos aqueles que fossem aprovados nesta primeira fase, seriam candidatos a receberem uma bolsa de iniciação científica na etapa seguinte: por meio de um sorteio.
A reação de perplexidade e revolta da maioria dos membros da comissão não poderia ser mais surpreendente e constrangedora, considerando que todos se diziam democráticos e de esquerda: O sorteio iria acabar com o mérito dos pesquisadores! – argumentaram.
Insisti das mais diferentes formas que, naquele ano, a distribuição das bolsas poderia ser feita por sorteio e aqueles que ficassem de fora, naquele primeiro momento, no ano seguinte teriam sua bolsa garantida e ainda poderiam concorrer ao sorteio normal das demais bolsas.
Por exemplo, tínhamos 30 bolsas para distribuir naquele ano e 40 professores. Sorteadas as bolsas, no ano seguinte, das nova 30 bolsas, 10 seriam reservadas para os professores que ficaram sem bolsas no primeiro sorteio. As outras 20 seriam novamente sorteadas entre os 40 professores. Sucessivamente, o fator aleatório promoveria a distribuição homogênea das bolsas entre os candidatos, num rodízio permanente, permitindo que TODAS as pessoas envolvidas com o crescimento da ciência e da universidade seriam contempladas ao longo do tempo de forma semelhante e igualitária.
Depois de muita discussão, a proposta do sorteio ganhou por um voto, foi implementada apenas naquela cota de bolsas, a contragosto de alguns membros da comissão (não por acaso, os mais “produtivos”), e eu nunca mais fui indicado para participar daquela comissão até minha aposentadoria na universidade.
Esta experiência foi um dos motivos para minha crítica à meritocracia na ciência e na universidade que publiquei nos anos seguintes:
1) Publicar mais ou melhor? - O Tamanduá Olímpico https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-65642011000200011
2) O Tamanduá Olímpico a caminho da obesidade científica http://rmmg.org/artigo/detalhes/394
3) Há esperança fora das pistas? – Sequelas da competição científica
https://lorcartunista.blogspot.com/p/ha-esperanca-fora-das-pistas-sequelas.html
Hoje, depois de ler o último livro de Michael Sandel, “A tirania do mérito: o que aconteceu com o bem comum?” (ver aqui: https://www.amazon.com.br/tirania-m%C3%A9rito-que-aconteceu-comum/dp/852001416X ), lembrei-me deste episódio das bolsas de iniciação científica.
E agora vou fazer uma coisa muito feia: vou me apoiar na autoridade de outro homem branco e da elite intelectual mundial para defender o sorteio, não apenas para a distribuição de bolsas de iniciação científica, mas para a entrada na universidade. Michael Sandel, filósofo da universidade de Harvard, defende e justifica profundamente o sorteio (que ele chama de loteria) como a única forma de enfrentarmos a meritocracia na universidade, que causa arrogância por parte da elite e humilhação para os que ficam de fora, gerando ressentimento intenso na sociedade, o que vem causando danos à democracia e permitindo a ascensão de populistas como Trump e Bolsonaro. (ver aqui: https://www.fronteiras.com/entrevistas/a-arrogancia-meritocratica-por-michael-sandel )
Voltarei em breve a falar do livro do Michael Sandel.
E proponho, mais uma vez o SORTEIO JÁ!
Para entrar na universidade e para cargos públicos!
Ver aqui outras manifestações sobre o sorteio em meu blog: https://lorcartunista.blogspot.com/2017/06/cientista-politico-da-universidade-de.html
https://lorcartunista.blogspot.com/2017/06/criticas-ao-projeto-do-sorteio-ja.html
https://lorcartunista.blogspot.com/2020/02/alozanfan.html
https://lorcartunista.blogspot.com/2017/10/gregorio-duvivier-apoia-sorteio-viva.html
https://lorcartunista.blogspot.com/2017/06/supremo-ja-aprova-o-sorteio.html
https://lorcartunista.blogspot.com/2017/06/grandes-cientistas-brasileiros-ja.html
https://lorcartunista.blogspot.com/2017/06/atletas-brasileiros-confiam-no-sorteio.html
https://lorcartunista.blogspot.com/2017/06/milhoes-de-brasileiros-acreditam-no.html
https://lorcartunista.blogspot.com/2017/06/blog-post.html https://lorcartunista.blogspot.com/p/ha-esperanca-fora-das-pistas-sequelas.html
[i] Esta situação me fez citar, durante nossas reuniões, o chamado princípio supostamente atribuído a São Mateus: “Àqueles que muito tem, mais lhes será dado; àqueles que nada tem, o pouco que lhes resta lhes será tomado”.
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