Este é meu milésimo post


Nos últimos seis anos, tentei cumprir a intenção da Betha, personagem da Now Sem Rumo [i] no primeiro post deste blog, em 19 de dezembro de 2014, que reproduzo acima, que era de mudar o mundo.

Por mil vezes estive aqui postando desenhos, charges, textos ilustrados, falsa filosofia e falsos poemas e entrevistas com amigas e amigos. Estes posts tiveram cerca de 185 mil acessos, ou seja, a média de 185 visualizações por publicação, a maioria delas realizadas por amigas e amigos que ainda me levam a sério ou me acham um humorista.

Tirando uns pequenos contratempos, como o aquecimento global, a pandemia de COVID e Bolsonaro, tenho conseguido cumprir a meta de mudar o mundo. Ou, pelo menos a minha visão do mundo.

O ato de escrever sobre aquilo que não sei, me ajuda a ficar sabendo, diria Fernando Sabino. E neste processo, vou descobrindo maravilhado minha ignorância cada vez mais infinita. Ao me expor publicamente, algumas vezes acabo recebendo críticas consistentes, que me obrigam a rever ideias e preconceitos, como recentemente aconteceu com o que pensava sobre os mecanismos do racismo.

Ao publicar um texto sobre quando nos tornamos racistas (VER AQUI ), a Luíza (de Oliveira Rodrigues, médica, feminista, antirracista e minha filha) chamou minha atenção para a confusão que ando fazendo entre preconceito e racismo e indicou-me algumas leituras esclarecedoras (VER AQUI
), que me convenceram de que ela tem razão: o mecanismo comportamental que descrevi tem a ver com preconceito (que pode até servir de base individual para o racismo), mas o racismo está ligado às estruturas de poder.

Outra opinião critica quanto à minha perspectiva comportamental do racismo foi feita pelo Tiago (Heliodoro Nascimento, doutorando em antropologia na UFMG), que me enviou de presente o livro Racismo Estrutural de Silvio Luiz de Almeida (VER AQUI ). A partir de sua análise estruturada e convincente, compreendi melhor as relações entre o racismo e a exploração capitalista, seja no colonialismo, seja no neoliberalismo contemporâneo.

Estas leituras, ainda em curso, estão me fazendo perceber o quanto a minha classe social, a formação em medicina e biologia, além da pesquisa em fisiologia do exercício envolvendo mecanismos evolutivos da fadiga, moldaram esta cabeça branca de homem pertencente à elite intelectual brasileira (sim, um doutorado nos insere nesta categoria, ainda que no plano econômico eu pertença à classe média).

Vou corrigindo minha visão equivocada ao considerar o racismo como se fosse apenas uma instituição anacrônica, um resíduo da escravidão, um pensamento atrasado, ou um comportamento preconceituoso. O racismo, assim como a opressão das mulheres, é parte indissociável da estrutura de exploração dos trabalhadores na sociedade contemporânea. O racismo e o machismo, ao considerarem, por exemplo, negros e mulheres, como seres humanos menos capazes, se inserem na meritocracia para justificar as desigualdades existentes, as passadas e as futuras.

Dividindo para explorar, o capitalismo vai criando subdivisões ideológicas na classe trabalhadora, como mostrei numa série de quadrinhos da Now Sem Rumo (VER AQUI o cenário).  Reproduzo alguns dos diálogos entre o General Bunker (ditador do lado Leste da nave) e o Senador Ferrante (seu conselheiro político) à medida que o tempo vai passando num momento de crise política na nave espacial.


Bunker – Os trabalhadores estão se organizando contra nós, os patrões!

Ferrante – Trate cada um deles de forma diferente, de acordo com sua religião, e daqui a pouco estarão se matando e nos deixam em paz.

Bunker – Os trabalhadores continuam se organizando para diminuírem nossos lucros!

Ferrante – Divida-os em raças e trata cada raça de forma diferente e daqui a pouco estarão se matando e nos deixam em paz.

Bunker – Os trabalhadores estão se organizando para taxar nossas fortunas!

Ferrante – Divida-os em nações, times de futebol e sexo e daqui a pouco estarão se matando e nos deixam em paz.

Bunker – Os trabalhadores estão exigindo igualdade, liberdade e fraternidade!

Ferrante – Ofereça igualdade de horas trabalhadas, liberdade para o capital e... o que é fraternidade?


Portanto, por causa do post e do carinho das amizades, vou ampliando a janela do meu olhar, arranjando motivos para permanecer vivo nesta sociedade digital, eternizando na internet, como desejava a Betha, a ideia de evolução permanente[ii].

Quaisquer que tenham sido os eventuais benefícios deste blog, agradeço à querida Ana de Oliveira Rodrigues por ter sacudido meus ossos a caminho do túmulo da aposentadoria e tornado seu pai um blogueiro dedicado. Aliás, foi o treinamento neste blog que me permitiu criar e cuidar do blog da Associação Mineira de Apoio aos Portadores de Neurofibromatose, que tem levado informações científicas para milhares de pessoas (ver aqui: www.amanf.org.br ).

Obrigado a todas e todos e vejo vocês no post 2.000 D.C. (depois da COVID).





[i] Now Sem Rumo é um conjunto de cerca de mil e poucas histórias em quadrinhos no formato de tira, que publiquei em parte na década de 80 em diversos jornais brasileiros e em parte na internet no começo deste blog. Uma coletânea foi publicada na forma de dois livros, hoje esgotados. Quem desejar um arquivo digital contendo as tiras, envie um e-mail para rodrigues.loc@gmail.com 

Now Sem Rumo é uma nave espacial perdida no espaço, na qual os dois lados (oeste e leste) são inimigos entre si. É uma metáfora sobre a Guerra Fria, ou das polarizações de hoje, ou o lado escuro da Lua, ou o consciente e o inconsciente. Você escolhe.


[ii] Uma adaptação festiva da Revolução Permanente do trotskismo misturada com as tinturas culturais das ideias gramscianas.


Comentários

  1. Parabéns, desnudado e se mostrando com muita coragem. Assim sejamos todos. Filhas são desafios constantes.

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  2. JBSenra tem me enviado, vez por outra, suas observações sobre este nosso pequeno mundo. Nada contra o João, mas dá pr'ocê me mandar, em vez de vez por outra, sempre o seu blog?... No mais, belas reflexões estas do milésimo post. Abração.

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