Quando nos tornamos racistas? (atualizado em 26/2/21)

 



Resumo de uma palestra
feita no grupo de amigas e amigos
denominados Os Facundos
(vídeo ao final)


Numa conversa, a amiga disse que as crianças pequenas não são racistas, que elas aprendem depois dos seis anos. Fiquei pensando.

Lembrei-me das ideias do cientista Robert Sapolsky, que começou sua vida como pesquisador “tornando-se” um babuíno para poder estudar o comportamento daqueles nossos parentes distantes. Ao ler seu “Memórias de um primata”, há cerca de 20 anos, apaixonei-me pelas suas aventuras no Quênia e em 2018 aprendi mais ainda com seu último livro sobre a biologia do comportamento humano (“Behave – the biology of humans at our best and worst”). Quem quiser conhecer um pouco de sua profunda obra científica, pode assistir o vídeo de 15 minutos no qual Sapolsky sintetiza algumas de suas ideias durante uma palestra TED (ver no YouTube https://www.youtube.com/watch?v=ORthzIOEf30 ).

O racismo é um dos piores comportamentos humanos e dizem que para combater o mal, o primeiro passo é conhecê-lo. Então, recorro às leituras do Sapolsky e de outros estudiosos do comportamento, como meu amigo Ramon Cosenza (ver aqui https://www.saraiva.com.br/por-que-nao-somos-racionais-9104803/p ), Daniel Kahnemann (ver aqui https://www.saraiva.com.br/rapido-e-devagar-duas-formas-de-pensar-4074748/p) e Paul Bloom (ver aqui https://www.saraiva.com.br/o-que-nos-faz-bons-ou-maus-7959151/p ) para tentar entender as possíveis causas para o racismo: por que a humanidade ainda é predominantemente racista?

Além das causas sociais, históricas e econômicas, haveria também um mecanismo biológico que favoreceria a persistência do racismo entre nós? 

Em outras palavras, o racismo social seria facilitado por uma base biológica, um comportamento selecionado durante a evolução da nossa espécie, talvez um mecanismo de defesa natural da tribo? É claro que, como insiste o Sapolsky, todos os comportamentos humanos são complexos e profundamente dependentes do contexto em que ocorrem, portanto, não pretendo cair no simplismo de qualquer viés determinista, tanto biológico quanto social.

Minha hipótese é a de que o racismo seria um comportamento de defesa do grupo contra desconhecidos, algo que foi muito importante na nossa vida como caçadores coletores, mas que hoje seria um desajuste cognitivo, um anacronismo numa sociedade moderna, globalizada e multiétnica (ver atualização deste conceito em 26/2/21 ).

Por desajuste cognitivo quero dizer a dificuldade para compreender e se comportar adequadamente num determinado contexto: por exemplo, saber ler não é necessário na vida dos caçadores coletores que vivem na selva, mas são indispensáveis numa sociedade urbana contemporânea. Desta forma, o analfabetismo é um déficit ou desajuste cognitivo numa sociedade letrada.

E o que seria esta sociedade moderna, na qual o racismo seria um desajuste cognitivo? Penso que vivemos um novo tempo na história da humanidade que se iniciou com o humanismo (com a substituição dos desígnios divinos pela razão humana), que se acelerou a partir da Revolução Francesa (com as propostas de igualdade, liberdade, fraternidade) e atingiu outro ponto alto na Declaração Universal dos Direitos Humanos após a Segunda Grande Guerra.

Preciso lembrar que esta hipótese de o racismo ser um mecanismo de defesa anacrônico é feita por mim, um homem branco, médico, de classe média, nascido num país racista e desigual, portanto um racista estrutural. Apesar disso, tento a desconstrução deste racismo e sou contra qualquer forma de discriminação por motivos éticos (desejo o melhor para todos), morais (é uma questão de equidade de direitos entre as pessoas) e legais (o racismo é um crime). Também sou contra o racismo por razões biológicas, pois a diversidade (biológica e cultural) deve favorecer a sobrevivência da nossa espécie (ver entrevista com Romeu Guimarães aqui: https://lorcartunista.blogspot.com/2021/01/cutucando-darwin.html ).

Mas o que chamo de racismo? Entendo por racismo os comportamentos de aversão a pessoas com corpos diferentes daqueles da sua própria família, tribo ou etnia (cor da pele, tipo físico, cabelos), gerando preconceitos contra outras culturas (língua, sotaque, hábitos alimentares, religião, crenças ou costumes) 

(Observação: depois de publicado este texto, minha filha Luíza questionou esta definição, indicando que racismo é um discurso de poder e não um comportamento de aversão: ver aqui).

Lembro com gratidão a orientação do professor Tomaz Aroldo da Mota Santos, que me fez ver que embora não existam raças humanas do ponto de vista biológico, há racismo social, cultural, político, jurídico. E o racismo social causa trágicos impactos na vida dos grupos discriminados. O social, então, se torna mais importante politicamente do que o biológico. Por isso, por exemplo, defendemos as cotas raciais, como passei a fazer desde o final do século passado.

Mas por que discutirmos uma base biológica para o racismo?

Se pretendemos acabar com o racismo, precisamos conhecer profundamente TODOS seus diversos mecanismos, incluindo os mecanismos evolutivos, pois já dizia Theodosius Hryhorovych Dobzhansky que nada faz sentido em biologia a não ser à luz da evolução. Talvez a existência de mecanismos cognitivos primitivos de rejeição ao outro, ao diferente, seja uma das razões para a relativa facilidade com que muitas populações têm sido capturadas por discursos racistas que terminaram em genocídios brutais.

Do ponto de vista evolutivo, portanto, somos uma mistura inseparável de natureza e cultura (em inglês o antigo dilema Nature X Nurture). Todos nossos comportamentos seriam resultantes da interação permanente entre a expressão dos genes e as pressões da cultura. Assim, nesta eterna discussão sobre o ovo e a galinha, todo gesto humano tem precedentes históricos conscientes e inconscientes, que influenciam nossos atos e decisões, de tal forma que, no limite, a livre escolha pode não passar de uma ficção que precisamos manter para sustentar nossa identidade.

Este domínio de fatores subconscientes alheios à nossa vontade pode explicar porque tantos comportamentos humanos não são racionais, como bem lembra nosso amigo o professor Ramon Cosenza.

Tem sido observado em estudos da neurociência que um dos fatores mais importantes no desenvolvimento cognitivo é a precocidade e profundidade com a qual os bebês rapidamente identificam seus familiares. Desde o nascimento a criança seria capaz de identificar a voz, a língua e o sotaque, assim como as características corporais de seus pais (ou cuidadores), estabelecendo profunda afinidade natural com elas. Esta familiaridade é fundamental na formação das identidades de grupo, como veremos adiante.

Por outro lado, o processo de desenvolvimento cognitivo humano passaria por diversas fases até atingir a maturidade em torno dos 25 anos. Assim, durante este período as diversas influências sociais recebidas poderiam moldar estes mecanismos de familiaridade, direcionando-os para comportamentos mais ou menos aversivos a pessoas de outra etnia ou estrangeiros.

Durante a caminhada do berço à vida adulta, dentro do seu grupo, a criança, o adolescente, o jovem adulto desenvolveria um altruísmo baseado na chance de retribuição e no reconhecimento social. Mas com os de fora do grupo, não.

A humanidade viveu em grupos isolados durante a maior parte de sua história e naquela situação a identificação automática dos “outros” era um mecanismo potente de sobrevivência. Parece-me provável que este mecanismo de formação de forte identidade grupal tenha sido selecionado como uma vantagem evolutiva no contexto da vida de caçadores coletores.

Num sentido complementar, diversos estudos mostram que, durante seu crescimento, se a criança não tiver contato social com pessoas de características diferentes daquelas de sua tribo, poderá desenvolver medo e aversão a pessoas diferentes dela e de seus familiares. Assim, crianças expostas precocemente ao convívio social com outras pessoas de outras etnias são menos propensas a comportamentos racistas.

Talvez este comportamento de grupo seja a base dos nacionalismos, pois todo nacionalismo é, no fundo, racista: basta observar os hinos nacionais, que dizem – nós somos melhores – nós merecemos esta terra – nós vamos matar vocês. No entanto, nos dois últimos séculos, a convivência com pessoas de diferentes corpos e culturas se tornou cada vez mais comum e necessária. Assim, a xenofobia e o racismo se constituem um comportamento contrário à integração e diversidade.

Neste contexto, especialmente nas crises econômicas, o medo e aversão do diferente, do estrangeiro, do outro, levam à dificuldade de reconhecer as pessoas de outra etnia como pertencentes à humanidade. A destituição do humano se manifesta quando chamamos o outro de animal, verme, barata, rato e outros seres considerados inferiores, repugnantes ou prejudiciais. O racismo abre o caminho para indiferença, o desprezo, a raiva, o ódio, a violência e o genocídio.

Sabemos que algumas sociedades se tornaram mais poderosas do que outras e dominaram grupos étnicos diferentes pela força (Jared Diamond). Como parte da justificativa para sua dominação, usaram a superioridade racial como narrativa. Estas sociedades construídas sobre a exploração racista, mesmo depois de abolida a escravidão formal, mantiveram em sua cultura os elementos que procuram naturalizar as desigualdades raciais. Nestas sociedades, todos nos tornamos racistas estruturais. Uma criança negra, por exemplo, nascida e crescida no Brasil, pode acabar assumindo os valores da elite branca, julgando-se realmente inferior, incorporando o racismo dominante.

Em resumo, o racismo seria um desajuste cognitivo numa sociedade multiétnica, causado pela manutenção anacrônica de um comportamento primitivo de defesa da tribo. O racismo impede o desenvolvimento de toda a humanidade, pois todos nos beneficiamos da diversidade.

Como acabar com o racismo?

Não sei a resposta, mas penso que ela deva levar em consideração maneiras de atuarmos precocemente sobre este forte mecanismo primitivo de afinidade grupal. Talvez a socialização mais intensa das crianças, talvez uma educação especialmente dedicada a este aspecto cognitivo, seguramente o fortalecimento das leis contra o racismo e a luta geral contra as desigualdades.

Talvez uma luta sistemática contra a meritocracia, que, afinal, justifica à esquerda e à direita a existência de desigualdades.

Em conclusão, Fátima estava certa quando disse que as crianças podem aprender o racismo quando crescem.

E eu não estava errado ao pensar que o preconceito contra o outro, contra o diferente de mim, começa muito cedo.

Lor

Fevereiro 2021


A seguir, os slides que apresentei durante nosso debate.





17/2/2021
Comentário enviado pela amiga Fátima Busko

Sobre o livro : “Just Babies”
Subtítulo: The Origins of Good and Evil
Autor: Paul Bloom

O autor acima, é estudioso e professor de psicologia na Universidade de Yale USA. Na composição do livro buscou suporte de seus estudos na biologia evolucionária e antropologia cultural. Fundamentou-se em pesquisas realizadas com bebês e crianças pequenas, as quais foram desenvolvidas em várias universidades nos Estados Unidos. Os departamentos dessas universidades estudam o comportamento relacional das crianças, como interagem com seus pares e com os adultos, e não quão morais elas são.

São diversas as pesquisas realizadas com os bebês e crianças menores, e não caberia aqui descrevê-las, no entanto, para dar uma ideia geral vou colocar alguns instrumentos utilizados. Em geral figuras geométricas coloridas, bonecas, marionetes. Mostra-se às crianças uma estorinha com as tais figuras, onde numa sessão, o quadrado vermelho faz o papel de malvado, enquanto o triângulo verde é o cara legal, e a bola amarela aquela que precisa de ajuda. Ao final, se oferece à criança numa bandeja o elemento ”bom” e o “mau”; as mãozinhas vão pegar a figura que representou o bom. Importante observar que mudam os componentes da experiência quanto à sua forma e cores evitando assim preferências vindas dessas.

Valores à luz da Seleção Natural

· Darwin nos diz que uma tribo em que a coragem, fidelidade e simpatia estão presentes no grupo será dominante sobre uma outra que não as tem.

· Valores difíceis de se explicar: cor da pele, moralidade sexual e igualdade para todos.

Temos capítulos que nos falam da Lealdade, Status, Castigo, Nosso Corpo, O Outro, e a Importância da Família. O que nos deram a oportunidade de ver que o argumento do LOR a respeito da importância em nossos primórdios quando nos constituímos em grupo. Construímos muita coisa boa, mas também o racismo, xenofobia e outros.

A ideia principal do livro atém-se no trinômio empatia, compaixão e razão. Empatia é um sentimento em relação à dor do outro enquanto compaixão é a ação que nos leva a aliviá-lo dela, inclusive a nós mesmos. Assim como os bebês nos mostram uma empatia rudimentar, nossa razão rudimentar foi forjada também na tribo, segundo o filósofo Peter Singer, ao que chamou de Lógica da Imparcialidade, nascida através de questões simples, como nos mostram o diálogo e falas abaixo:

Sujeito A - Eu quero isto!
Sujeito B - Eu também quero!
Sujeito C - Ele(a) me bateu!
Sujeito D - Ele(a) roubou minha comida!

São sentenças que fazem todo sentido para aquele que apanhou, para quem bateu, e o querer das coisas.

Podemos imaginar o quanto de gente morreu ou se feriu antes da formação das tribos. A partir delas é que se esboçam as primeiras tentativas de justiça com a instituição do conceito do terceiro, p. ex., o chefe da tribo e suas arbitragens. Situações como aquelas fizeram surgir a luz tênue da civilidade.

LOR e eu concordamos que nossos relatos são complementares.

Como acabar com o racismo?

Concordo com as posições do LOR, e aproveitando que não sou filósofa, vou colocar um desejo antigo que nasceu muito antes de termos de confrontar as “fakes News”: a volta da disciplina de Filosofia nas escolas. A filosofia nos coloca questões simples - O que é? - Por que é? Como é? Somos os únicos animais com capacidade reflexiva e aí volto à minha paixão dos 17 anos quando aprendi de Sócrates - “O que sei é que nada sei”.

Paul Bloom fala sobre seu livro: https://www.youtube.com/watch?v=MLrzetNHAYo

Kiley Hamlin fala sobre suas pesquisas com bebês: https://www.youtube.com/watch?v=Ki1zyu81iMg

Agradeço ao Ivo Busko que ajudou nos sites acima, pois sou ruinzinha em internet.

Fátima Busko

16/02/2021















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