Há esperança fora das pistas? Sequelas da competição científica.







“A competição é um jogo,
no qual
todos perdem
no final” (1) 










Publicado originalmente como:
RODRIGUES, Luiz Oswaldo Carneiro. Há esperança fora das pistas? Sequelas da competição científica. Caminhos (UFMG), v. 30, p. 39-49, 2013.


Resumo

Não há igualdade de oportunidades. A ciência é uma construção histórica e a experiência de cada cientista determina sua inserção na comunidade acadêmica. A competição tem efeitos colaterais evidentes que superam os benefícios ideologicamente disseminados e supostos. Os recursos públicos para a ciência devem ser distribuídos de acordo com decisões políticas destinadas a diminuir as desigualdades históricas, por exemplo, entre homens e mulheres.


Introdução

Depois de ler sobre a predominância dos homens como autores principais de trabalhos científicos (West, 2012) e ver um informe publicitário da FAPESP (2) mostrando os recursos investidos em pesquisa por aquela instituição, comentei com um colega:

- “Se tivesse nascido mulher, eu teria cinco vezes menos chance de ser o principal autor de um artigo científico, mas se nascido fosse em São Paulo, e não em Minas Gerais, eu teria o dobro de financiamento para a pesquisa”.

O colega argumentou:

-“Nascer mulher, sem dúvida, diminuiria sua oportunidade de se tornar cientista, porque na minha área da computação, por exemplo, apenas 20% são mulheres (3). No entanto, quanto às verbas para pesquisa, em São Paulo você teria que disputar com muito mais pesquisadores do que em Minas: esta maior competição entre os pesquisadores paulistas é que explica a melhor qualidade da sua produção científica”.

Pensemos um pouco sobre este diálogo.

Ele contém dois argumentos importantes: primeiro, que existem condições alheias ao nosso desejo de ser cientista e, segundo, que a competição é um bem em si.



Como nasce um cientista?

Comecemos imaginando quais as chances de duas crianças de se tornarem cientistas, sabendo que nasceram há 60 anos, por exemplo, em Nairóbi, no Quênia: uma menina e um menino – ele, branco, de uma família de classe média, ou ela, negra, nascida numa favela? Imagino que intuitivamente diremos que seria o menino branco, pois a maioria de nós levará em consideração as oportunidades sociais desiguais resultantes das diferenças quanto ao sexo, à cor da pele e à classe social dos pais, ainda que a localização geográfica tenha sido a mesma para as duas crianças (4).

Sabe-se que o sexo, a família e o local de nascimento são algumas das condições que delimitam as histórias de vida. Embora o potencial humano genético seja semelhante ao nascimento, as circunstâncias do ambiente acabam por moldar a expressão das características individuais e por produzirem a variedade de comportamentos e aptidões exibidos pela humanidade, entre eles a atividade científica. No entanto, acredita-se amplamente que as pessoas têm igualdade de oportunidade e que podem ser tudo aquilo que o desejarem (5). Se não o conseguem é porque não se esforçaram o bastante.

Há, de fato, uma quase igualdade de oportunidades, mas apenas por um breve momento: na fecundação, quando o novo ser humano compartilha razoável semelhança genética com seus bilhões de companheiros de espécie. Digo quase igualdade, porque, mesmo naquele instante podemos, por acaso, herdar ou sofrer variações no nosso genoma, decorrentes de mutações genéticas, as quais potencialmente seriam causadoras de variações funcionais ou, em determinados tipos, de algumas doenças ao longo da vida.

Daí para frente, tudo se torna mais diferente (inclusive entre gêmeos univitelinos), dependendo das condições intrauterinas de nutrição (ou desnutrição), da estrutura da família (ou ausência dela), da classe social (se já ou ainda for uma sociedade de classes), do país (se já ou ainda existirem países), da organização social em que se encontra a humanidade (se já ou ainda for uma das civilizações), enfim, de onde e quando está nascendo uma nova pessoa na história do Universo.

A nossa trajetória de vida, - córrego, ribeirão, rio, - resulta de duas forças: acaso e história. O acaso, - cometas, terremotos, mutações, - interferindo nas possibilidades; a história, - genética, cultural, planetária, - impondo as probabilidades. O possível, de tudo se pode imaginar: o provável, de tudo dependerá.

Apesar das evidências de que o contexto histórico determina as probabilidades de nossas vidas, agimos habitualmente de acordo com o princípio da possibilidade (tudo é possível) e do livre arbítrio (se o escolhermos e desejarmos). Esta maneira de ver o mundo é coerente com a ideologia dominante, segundo a qual, para justificar a acumulação de riqueza por uns poucos, reafirma-se permanentemente a existência de uma suposta igualdade de oportunidade no início da corrida simbólica entre todos.


Nesta ilusão, por exemplo, somos convencidos de que devemos publicar os resultados de nossas pesquisas numa revista internacional de alto impacto (é possível), embora nossa história pessoal possa indicar que isto será difícil (pouco provável).

É possível aos brasileiros publicarem artigos científicos em revistas de “alto impacto”, mas é preciso ir além da análise técnica para sabermos se o tema é relevante para o interesse das revistas internacionais. No final, o contexto histórico do autor é decisivo: sua habilidade em escrever em inglês (sem sotaque, se possível), seus recursos financeiros e sua universidade (infraestrutura), entre outros fatores.

Retornemos, por exemplo, à situação dos dois cientistas, um em Minas Gerais e o outro em São Paulo. Ainda que disponhamos de informações quantitativas bem organizadas sobre a distribuição dos recursos brasileiros para a pesquisa (ver dados da CAPES e do CNPq em suas respectivas plataformas), os quais demonstram a tentativa de distribuição equitativa dos recursos públicos, é muito difícil comparar as facilidades e oportunidades “de competição” entre cientistas dos dois estados (Figura 1).



Figura 1 – Total de bolsas concedidas em 2011 pela CAPES e CNPq apenas nos estados de Minas Gerais e São Paulo. Observa-se que nas Ciências Agrárias, os dois estados têm aproximadamente o mesmo número de bolsistas, mas nas Ciências da Saúde, nas Bolsas do CNPq e no total de bolsas, o estado de São Paulo apresenta maior número do que Minas Gerais. Apesar de grandes diferenças na área da saúde e no total de bolsas, quando se considera a população dos dois estados, São Paulo apresenta apenas cerca de 20% a mais de bolsistas (Adaptado das plataformas www.capes.gov.br e www.cnpq.br )


A Figura 1 é apenas uma pequena amostra da grande complexidade de fatores que devem ser levados em consideração para podermos afirmar que as condições de competição seriam maiores em São Paulo do que em Minas Gerais. Inclusive, como lembra o professor Enio Pietra Pedroso, o estado de Minas Gerais abriga o maior complexo universitário público federal do Brasil, e isto deve ser considerado de alguma forma na balança da “competição” científica entre mineiros e paulistas. Na verdade, podemos concluir que cada estado (e cada região dentro deles, cada cidade, etc.) possui condições históricas específicas para o desenvolvimento científico, o que os torna desiguais como ponto de partida para uma carreira científica.

Exige certo treinamento mental contínuo para levarmos em conta a probabilidade histórica e não apenas a possibilidade dos nossos desejos se realizarem no cotidiano, enquanto a roda da história gira ao nosso redor em sua imensa complexidade. Assim, comportamo-nos como se a história não pertencesse ao nosso fazer científico. Por exemplo, durante uma palestra (6) motivada por duas publicações anteriores que discutiram o produtivismo científico (Rodrigues, 2007) e seu agravamento (Rodrigues & Rezende, 2010), pedi a todos os presentes que respondessem por escrito e anonimamente à pergunta: O que é a ciência e por que escolhemos a vida científica?

Observei que a maioria das respostas afirmou que a ciência é a atividade de produzir (7) conhecimentos (úteis) e a escolha pela vida científica é decorrente de razões pessoais (desejos variados, na primeira pessoa do singular). Apenas uma pessoa descreveu a ciência como um processo, no qual são construídas visões cada vez mais abrangentes, profundas, detalhadas e precisas do Universo, embora não tenha mencionado que este processo acontece de uma determinada maneira porque está inserido num contexto histórico.

No entanto, como diz a professora de História da Ciência, Ana Carolina Vimieiro Gomes, “a ciência é construção histórica: a experiência de cada cientista determina sua inserção na comunidade acadêmica e as condições socioculturais influenciam os modos de produção de conhecimentos dessas comunidades”. Ao desconsiderar a ciência como uma construção coletiva da humanidade, coerentemente, nenhuma das respostas ao meu questionário relacionou sua história pessoal com sua “escolha” pela vida científica.

Se toda pesquisa científica se dá num contexto histórico, é fundamental que nas teses de doutorado seja documentado o processo de construção da pergunta formulada. Neste sentido, é um equívoco dos colegiados de pós-graduação a substituição da defesa da redação em português da tese de doutorado por artigos publicados. 

Primeiro, porque desobriga o autor do registro histórico da construção do conhecimento na língua portuguesa, o que é uma perda de identidade cultural. Segundo, porque esta decisão transfere a principal responsabilidade dos colegiados (a formação dos novos doutores, os novos professores e pesquisadores) para o domínio dos revisores anônimos e editores dos periódicos, os quais, por sua vez, estão submetidos à lógica do mercado editorial científico e às pressões econômicas capitalistas. E qual é esta lógica? A lógica da competição.


Como vive um cientista?

Competindo: com os colegas da mesma área (pelos recursos locais), com cientistas de outras áreas (pelos recursos gerais) e, principalmente, consigo mesmo, pois somos levados a acreditar que competir é um bem em si e quanto mais vencermos as competições, melhores seremos. E esta corrida, aparentemente, não tem fim.

Somos levados a acreditar que a competição é um bem em si a partir das seguintes premissas:

a) Há igualdade de oportunidades;

b) A competição seleciona os melhores;

c) Os vencedores adquirem o direito a ter mais;

d) Mais é sempre melhor;

e) O verdadeiro progresso é feito por aqueles que têm mais;

f) O progresso atinge a todos e assim, todos ganham com a competição;

g) A competição é da natureza humana, pois faz parte da seleção natural.



Já comentei que o caráter histórico da ciência (da sociedade, senso lato) contradiz a existência de igualdade de oportunidades, o que desconstruiria toda a ética justificadora da competição. Para seguirmos adiante com as demais premissas, temos que esquecer temporariamente a história. Tentemos.

A competição seleciona os melhores? Imaginemos que uma ponte precisa ser construída e temos um determinado recurso financeiro para isso. Duas equipes de engenharia se apresentam com potencial para realizar o trabalho (se pudermos esquecer o histórico de cada equipe, é claro). O que é melhor para a comunidade? Uma competição entre quem apresenta o menor preço (à custa de que tipo de economia ele será obtido?) ou o projeto técnico mais moderno (avaliado pelo tamanho da comissão corruptora que o prefeito receberia?). Ou seria melhor (para a comunidade que financia a obra) que as duas equipes repartissem o recurso financeiro, unissem suas ideias num projeto e realizassem a obra na metade do tempo? Sinto-me como o personagem Cândido, de Voltaire, ao formular perguntas como esta.


Os vencedores adquirem o direito a ter mais? É interessante como o direito à propriedade pode ter dois pesos e duas medidas. Quando os portugueses chegaram ao Brasil, a posse da terra seria, por direito, dos índios, mas isto não impediu os conquistadores europeus de fincarem suas bandeiras no solo e na carne dos habitantes de Pindorama. A partir daí, no entanto, deste novo marco histórico arbitrário, a propriedade passou a ser sagrada para os colonizadores e passou a valer mais do que a vida de qualquer indígena que venha a ameaçá-la (ver o recente conflito entre Terenas e posseiros no Mato Grosso do Sul). Trazendo o direito de propriedade para o campo da ciência, a partir de qual momento um determinado conhecimento científico passa a ser de minha propriedade? Devo contar o tempo que eu estudei com recursos públicos e recebi financiamentos públicos para a pesquisa, ou, convenientemente, apenas do momento da publicação do artigo na revista especializada ou da patente registrada?



Mais é sempre melhor? Este é o pensamento dominante mais profundamente incrustado em nossa ideologia, porque ele é de fundamental importância para a sobrevivência no sistema capitalista. Dois indivíduos possuem algum capital acumulado (esqueçamos novamente as origens históricas, mas poderiam ser heranças, por exemplo, de um parente traficante de escravos no Brasil colônia ou de um pirata inglês). Eles montam duas fábricas de sapatos e empregam trabalhadores, os quais fornecem a mais valia com sua transformação da matéria prima, o que resulta em mais capital acumulado. O capital acumulado impõe aos capitalistas a sua reaplicação e expansão (através da formação de mais lucro obtido com a ampliação da compra de trabalho humano). Apesar de toda a elegância dos discursos sobre os benefícios da livre concorrência, os dois capitalistas estarão permanentemente engajados na tentativa de destruição um do outro, para o vencedor estabelecer o monopólio da venda de sapatos. Então, a meta de toda e qualquer empresa capitalista é simplesmente MAIS.

Novamente, sinto-me como o Cândido, do Voltaire, mas desta vez em boa companhia, a de Danielle Mitterrand, socialista, viúva do presidente francês François Mitterrand e criadora do France Libertes (8), que dizia - “Como é possível pensar que podemos crescer sem limites, se vivemos num planeta com recursos finitos? “. Na ciência, apesar dos discursos elegantes da academia, estamos de fato empenhados em obter MAIS: maior quantidade de recursos para a produção científica, para garantir as publicações, as quais vão garantir os próximos recursos e assim por diante, até nos tornarmos um monopólio, quer dizer, um Instituto de Excelência.

O progresso é feito pelos Institutos de Excelência? Esta é versão científica da famosa ideia do “Efeito Cascata” de Margareth Thatcher e Ronald Reagan, que preconizavam que devemos desregulamentar o estado, acabar com os direitos trabalhistas para deixar os ricos ficarem mais ricos, pois eles redistribuirão o capital e “as empresas conceberão formas de compartilhar com seus funcionários a riqueza criada por seu know-how” (Wheen, 2004). 

Mais ou menos, seria supor que o efeito da instalação de um supermercado Wall Mart numa pequena cidade traria progresso aos seus habitantes, quando, na verdade, a grande empresa destrói os concorrentes menores locais, acaba com os empregos e torna a cidade fantasma (Gereffi & Christian, 2009). Na ciência, quando um pesquisador de um Instituto de Excelência disputa uma bolsa de iniciação científica com os demais colegas mais pobres de seu departamento ele empobrece a diversidade científica na sua comunidade. A maioria perde, naquilo que é fundamental: a pluralidade de ideias científicas.

A competição seria da natureza humana? Não tenho dúvida de que o mecanismo da seleção natural depende das características genéticas (aleatórias) dos organismos envolvidos na disputa pelos recursos do ambiente (Lewontin, 1998), e que os genes mais se duplicam quanto mais (aleatoriamente) ajustados forem às condições do ambiente (Dawkins, 1977). Além disso, o mantra da competição como elemento natural parece muito evidente na corrida dos espermatozoides em direção ao óvulo (embora, na verdade são milhões de participantes para que um deles tenha chance razoável de fecundar e não necessariamente porque o que penetrar primeiro o óvulo é “o melhor” – se assim o fosse, não haveria doenças genéticas transmitidas pelos espermatozoides).

Apesar da disputa natural pelos recursos do ambiente, nas espécies sociais, como a humana, a característica fundamental que garante a sua existência é a cooperação entre os indivíduos da mesma espécie. Ainda que haja a persistência de mecanismos de seleção internos entre indivíduos de uma mesma espécie social (seleção sexual, por exemplo), eles são menos importantes para a sobrevivência do grupo do que a cooperação. Somente com a domesticação dos animais e desenvolvimento da agricultura, dando início à propriedade privada dos meios de produção, é que surgiram classes sociais dentro da nossa espécie, estas, sim, em competição desde então. Então, competir faz parte da estrutura social historicamente criada por nós e na qual atualmente vivemos, mas não da natureza humana, pois passamos 95% da nossa existência vivendo em diversas formas primitivas de cooperação, como caçadores e coletores.


Finalmente, além do desgaste causado pela competição (de Meis, 2003) há efeitos colaterais que nos atingem a todos, entre eles a sedução exercida pelos caminhos tortuosos das fraudes científicas, que são, de tal forma crescentes, que o cientista Paulo Sérgio Lacerda Beirão (9) declarou ao jornal Estado de São Paulo em 24 de março de 2013: “É uma coisa tão horrorosa e tão incômoda que, por muito tempo, preferimos acreditar que o problema não existia. Mas ele existe, e estamos lidando de frente com ele agora.” O fenômeno é tão grave que já existem serviços de reabilitação internacionais para cientistas fraudadores (Cressey, 2013). No entanto, contra a epidemia de resultados inválidos, distorcidos e falsificados, talvez as defesas da comunidade científica sejam fracas porque os mecanismos de controle estão focados na conduta dos pesquisadores e não no maior controle das publicações (Fanelli, 2013).

Estas preocupações com o aumento da falsidade científica em escala mundial motivaram a realização dos Congressos Mundiais sobre Integridade na Pesquisa (10) no Canadá, durante o qual algumas propostas devem ser discutidas:

a) Melhorar a orientação, supervisão e capacitação dos pesquisadores;

b) Incentivar a publicação de resultados negativos;

c) Reduzir a pressão por publicação;

d) Ensinar ética;

e) Aumentar a punição aos fraudadores.


Mas voltemos ao comentário do meu colega: teria ele razão ao dizer que a maior competição tem resultado no crescimento científico do Brasil? Como medir este crescimento? Geralmente são usados dois indicadores: o total de artigos publicados e aqueles supostamente mais importantes (arbitrariamente definidos como o grupo formado pelo 1% mais citado). Rogério Meneghini (11) considerou recentemente este último índice, quando obtido no webofscience-ISI, como o indicador de maior validade para desempenho científico.

Usando-se dados com critérios semelhantes (Noorden, 2012), observa-se na Figura 2 uma comparação entre o número de artigos publicados em 2012 por alguns países que merecem uma atenção: Brasil (por ser nosso país e por ter sido o terceiro em crescimento de publicações), USA (maior número de publicações), China (maior crescimento em número de publicações), Arábia Saudita (segundo crescimento em publicações) e Suíça (maior número de citações).

Os cientistas brasileiros publicaram 29.924 artigos científicos em 2012, um aumento de 8,9% em relação a 2011, o terceiro crescimento mundial, atrás apenas de Arábia Saudita (+33,1%) e da China (+13,4%). No entanto, dentre os artigos brasileiros, apenas 0,43% deles estão entre aqueles 1% mais citados. Isto parece ser um desempenho pior do que da Suíça, que, de um total menor (21.796 artigos publicados) conseguiu colocar 1,91% entre os mais citados, ou também pior do que os Estados Unidos (1,19% mais citados em 311.975 publicados).






Figura 2 – Comparação entre o número de artigos publicados em 2012 pelos Estados Unidos (maior número de publicações, considerado referência para os demais = 100%), o Brasil (terceiro em crescimento de publicações), China (maior crescimento em número de publicações), Arábia Saudita (segundo crescimento em publicações) e Suíça (maior número de citações entre os 1% mais citados, considerado referência para os demais = 100%) (Adaptado dos dados de Noorden, 2012).


Portanto, não parece ser a quantidade de publicações de um país a suposta razão da sua qualidade, pois comparamo-nos à China em citações (0,56% entre os mais citados), embora a produção chinesa seja cinco vezes maior (159.121). Além disso, o maior índice de citações encontra-se na Suíça, país com menos publicações do que o Brasil.

Independentemente destas quantificações, a pergunta que devemos fazer é se este crescimento resultará em benefícios para a sociedade que nos financia, pois senão corremos o risco de nos tornarmos, por exemplo, como os Estados Unidos que, apesar de ainda ser a maior potência científica do mundo, apresenta indicadores de saúde piores do que os demais países de alta renda (Human Mortality Database, 2013).

Ou, em outras palavras, valorizar a competição científica e menosprezar a cooperação significa aumentar o isolamento dos cientistas e torná-los vulneráveis, por exemplo, à indústria sanitária (12), que canaliza dinheiro para pesquisas relacionadas a seus produtos e ninguém, aparentemente, pode (ou quer?) deter este processo (Seife, 2013).





Como morre um cientista?



Há os cientistas que morrem de morte natural (suas ideias e palavras transformando-se em outras formas de vida na sociedade). Há os cientistas que são envenenados pela burocracia (de Meis, 2003). Mas creio que muitos de nós estamos a morrer de exaustão, numa competição insana, que consiste apenas em contar artigos publicados e multiplicá-los pelo fator de impacto, esquecendo-nos de repartir os dividendos com a comunidade que nos sustenta.


Mas, há esperança?

Enquanto preparava este texto, perguntei-me algumas vezes se eu acredito realmente que seja possível outra maneira de vivermos juntos, outra organização social mais humanizada, solidária e justa. Enfim, se há esperança fora das pistas de competição ideológica. Confesso que oscilei entre dois estados de ânimo.

Em alguns momentos, desiludido pelas evidências da contra revolução científica que se abateu sobre o mundo a partir da década de 80 (Wheen, 2004), desanimava-me diante de certos números sobre a atual sociedade humana: 98% acreditam em deuses, milhões de meninas continuam a ser sexualmente mutiladas por motivos religiosos, no Século XX dezenas de milhões de pessoas foram exterminadas em guerras, cerca de um bilhão de pessoas vive na pobreza, a destruição do ambiente não parece ter fim... Para culminar, no Dia Internacional da Mulher de 2013, tomei conhecimento de que 92 mil mulheres foram assassinadas no Brasil entre 1980 a 2010 e 47 mil e setecentas destas mortes aconteceram na última década (Secretaria de Política para as Mulheres, 2012), ou seja, a violência contra a mulher está aumentando! Fiquei estarrecido. Nestes momentos de pessimismo, pensava que Yoshihiro Francis Fukuyama tinha razão: o capitalismo venceu, acabou a história.

Em outros momentos, inspirado pelas promessas da revolução científica da década de 60 (Snow, 1995), idealizava que ao conquistarmos a compreensão da nossa trágica existência individual fôssemos capazes de recuperar nossa identidade histórica como parte do grupo social ao qual deveríamos nos sentir pertencentes. De posse desta verdadeira identidade, poderíamos construir racionalmente, por meio da democracia, da liberdade e da ciência, uma sociedade menos violenta. Nestes momentos de otimismo, eu lembrava que há menos de 130 anos a escravidão era a norma social vigente em muitos países, as mulheres não votavam, não havia a Declaração dos Direitos Humanos e nem democracia no Brasil, portanto, estaríamos hoje algo melhor do que antes: a história parecia continuar.

Se escrevi este texto e o divulguei é porque, no final, alguma esperança prevaleceu. A esperança de mudarmos o que for possível para cada um. Por exemplo, diminuindo a competição, privilegiando o público sobre o privado, consumindo menos e pensando mais o planeta como a casa (finita e vulnerável) de todos os seres humanos. Para começar, vamos repartir os recursos financeiros para a pesquisa de acordo com políticas compensatórias (cotas) para as desigualdades históricas entre homens e mulheres?



Propostas

A primeira delas é que a competição entre nós deve ser abolida.

A competição acadêmica tem destruído a solidariedade, reduzido a humanização do ambiente de trabalho e, pasme, prejudicado o desenvolvimento científico!

A competição acadêmica gera fraudes, ansiedade, autoritarismo e pressa.

A pressa é inimiga da ética e justifica a violação do respeito às diferenças de opinião, de origem, de história pessoal, de gênero e desenvolvimento pessoal.

A competição acadêmica tem substituído o mérito acadêmico, ou seja, chegar à frente, ganhar muito e publicar mais tem sido considerado mais importante do que chegar junto, ganhar o necessário e publicar melhor.

A competição acadêmica tem sido justificada como sinônimo de qualidade, quando na verdade apenas justifica privilégios de divisões históricas, pois aquele que já tem muito, mais obtém com mais facilidades.

A competição acadêmica é parte da competição maior, base estrutural da ideologia dominante na sociedade que temos construído.

A competição acadêmica precisa ser abolida.

Pela Abolição da Competição, me parece uma boa ideia, portanto.



Como?

Duas medidas práticas podem ser defendidas (não estão ordenadas por importância):

1) Apenas as cinco publicações principais de toda a vida serão introduzidas e analisadas no Lattes para quaisquer finalidades (os artigos, capítulos, etc. permaneceriam disponíveis na íntegra, acompanhados de justificativa referente à sua relevância);

2) Sorteio como norma, onde houver algo a ser distribuído a um número maior de pretendentes do que de recursos disponíveis (vagas na universidade, vagas na pós-graduação, bolsas de iniciação científica, bolsas de "produtividade", auxílios CNPq, FAPEMIG, etc.).

3) Cotas associadas ao sorteio para corrigir distorções de desigualdades históricas (gênero, etnia, classe social)

O fundamental é abolirmos qualquer forma de competição entre nós.


Notas


(1) Um dos versinhos que reuni para meu neto Antônio sob o nome de POEMIN, 2012.

(2) FAPESP: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo

(3)  “Mulheres são minoria em segmento que muda o mundo: a computação', diz professora. Beth Gardiner, reproduzido do New York Times, Londres - Folha de São Paulo 18/03/2013.

(4) Ver as histórias de Rute S., uma das muitas mulheres quenianas anônimas que foram esterilizadas à revelia por serem portadora do vírus HIV, e de Richard Dawkins, cientista britânico mundialmente conhecido e autor do livro “O Gene Egoísta” (1977).

(5) Observe-se o hino da Disneyworld, que vem embalando tantas gerações em todo o mundo, quando a Fada Madrinha diz ao Pinóquio: “Se tens fé no coração, tudo, tudo então terás, pede um bem à tua estrela e alcançarás. Abre bem teu coração, vê o quanto a crença faz, pede um bem à tua estrela e alcançarás.”

(6) “Café com a Pós”, uma atividade estimuladora do pensamento organizada pela Representação Discente do Programa de Pós Graduação em Saúde Pública da Universidade Federal de Minas Gerais, novembro de 2012.

(7) Note-se que a expressão produzir (e não construir, desenvolver ou mesmo descobrir), presente na maioria das respostas, está em perfeita consonância com a ideologia produtivista dominante no meio científico.

(8) http://www.france-libertes.org

(9) Presidente da Comissão de Integridade na Atividade Científica (Ciac) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), criada há um ano para lidar especificamente com esse assunto.

(10) A terceira edição em maio de 2013, ver página do evento, wcri2013.org , no qual Paulo Beirão representa o Brasil.

(11) Coordenador de Pesquisas do SciELO, Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde-BIREME-OPAS-OMS em comentário sobre o Ranking das Universidades no Jornal da Ciência, fevereiro de 2013.

(12) A indústria sanitária - química fina, farmacêutica e de equipamentos médico hospitalares – representa o segundo complexo econômico financeiro do mundo (Enio Pietra Pedroso).


Referências 

Cressey D. “Rehab” helps errant researchers return to the lab. Nature 2013; 493:147-147.

Dawkins R. O gene egoísta. Edição Comemorativa dos 30 anos do The Selfish Gene. Companhia das Letras. São Paulo. 2007.

de Meis L e colaboradores. The growing competition in Brazilian science: rites of passage, stress and burnout. Brazilian Journal of Medical and Biological Research 2003; 36:1135-1141.

Fanelli D. Redefine misconduct as distorted reporting. Nature 2013; 494: 149-149.

France Libertes, 2013. http://www.france-libertes.org

Gereffi G, Christian M. The Impacts of Wal-Mart: The Rise and Consequences of the World's Dominant Retailer. Annual Review of Sociology 2009; 35: 573-591.

Human Mortality Database. Nature 2013; 493: 277-277.

Lewontin, R. A tripla hélice. Companhia das Letras. São Paulo. 1998.

Noorden RV. 366 days in science. Nature 2012; 492: 324- 327.

Rodrigues LO. Publicar mais ou melhor? O Tamanduá Olímpico. Revista Brasileira de Ciências do Esporte 2007; 29 :35-48.

Rodrigues LO & Rezende NA. O tamanduá olímpico a caminho da obesidade científica. Revista Médica de Minas Gerais 2010; 20:375-379.

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Seife C. A pesquisa sobre medicamentos é confiável? Scientific American Brasil 2013; 57-63.

Snow CP. As duas culturas e uma segunda leitura. Editora da Universidade de São Paulo, 1995.

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Wheen F. Como a picaretagem conquistou o mundo. Equívocos da modernidade. Editora Record. Rio de Janeiro. 2007.







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