O triunfo da pobreza
Antes mesmo que eu dissesse qualquer coisa, ao entrar no quarto de meu avô, depois que desliguei o noticiário na televisão sobre o resultado da votação, apesar de quase completamente cego ele virou-se em minha direção e disse que já sabia, que acontecera infelizmente o que ele pressentira e vinha nos dizendo nos meses anteriores: a crise econômica está empurrando o mundo para a direita novamente. Vovô passara pelas duas grandes guerras mundiais e insistia na semelhança existente entre as viradas dos séculos: globalização acelerada do capitalismo, concentração de renda com desigualdade econômica absurda, elitismo social em alta, nacionalismos bélicos histéricos, racismo generalizado e disseminação de religiões missionárias. À nossa argumentação de que havia diferenças importantes a considerar, ele indagava quais, mas antes que pudéssemos enumerar uma ou duas ele retomava: veja a Europa no começo do Século Vinte, sua imensa riqueza acumulada pela minoria concentrada em alguns países em disputas comerciais iniciou uma guerra trágica da qual surgiu a primeira resistência ao capitalismo, a Revolução Russa, uma façanha inédita de um grupo de comunistas radicais que conseguiram levar grande parte da população de uma ditadura czarista para uma ditadura do proletariado, trocando a fome monárquica pela fome gerenciada pelo partido. Do outro lado, ameaçados pelo fantasma famélico do socialismo, os ricos americanos e europeus inflaram suas apostas na especulação financeira que levou à queda da bolsa em 1929, desencadeando algo parecido com a crise que estamos vivendo desde 2008! Meu avô gesticulava os braços tentando representar num arco no espaço o grande salto temporal que percorrera. No desespero da crise econômica, os mais vulneráveis, como sempre, se tornam presas fáceis do discurso populista, e o populismo é sempre de direita, lembre-se, todo paternalismo é uma incapacitação política no longo prazo, porque você sabe que quanto maior a pobreza, mais analfabetismo, menos informação, menos conhecimento, mais as pessoas seguem estupidamente líderes carismáticos que prometem melhorar as coisas se acabarmos com os culpados, como os judeus ontem ou os terroristas hoje. Então, nessas horas, o lema da pátria ganha força e armas, e vale tudo para transformar desemprego, recessão e crise econômica numa grande Alemanha, numa grande Inglaterra, ou numa grande América novamente. Mas a ideia de pátria não existe sem povos eleitos, sem seres superiores predestinados a guiar a humanidade, sem direitos divinos de nações, e então justificam-se os fortalecimentos de fronteiras e cultivam-se os múltiplos matizes racistas contra estrangeiros. Pátria também não sobrevive sem moralismos, sem o aprisionamento das pessoas no seu medíocre cotidiano e em suas casas, então os discursos exaltam do valor do trabalho honesto, da humildade e obediência, da família, do direito à vida contra o aborto e o planejamento familiar, da necessidade da submissão da mulher e da natureza ontológica da hierarquia patriarcal. É desta forma que se justificam os sacrifícios, os baixos salários, as perdas de direito, a eterna vigilância policial para se manter uma hipotética liberdade, a perda de milhares de vida de jovens e pobres nos campos da guerra e a contínua ameaça nuclear sobre nosso planeta. Meu avô calou-se brevemente, ofegante. Sei que você vai dizer que historicamente estamos melhorando, que houve conquistas sociais depois da Segunda Guerra Mundial.... Fez um esforço, controlou a respiração para continuar. Acho que nada mais houve do que um breve interregno, um entre reinos, como dizíamos na minha juventude, um tempo suficiente apenas para o grande capital se reorganizar e desmontar o estado de bem-estar social que não existia antes da Primeira e foi criado depois da Segunda Guerra, apenas para conter a ameaça socialista, porque leis e direitos criam obstáculos ao lucro e à exploração do homem pelo capital. Derrubado o mito do muro de Berlim, nada mais há a temer concretamente, nenhum obstáculo impedirá o pleno culto do indivíduo milionário que tripudia sobre os pobres fracassados e indolentes imbecis, como a aristocracia europeia fazia elegantemente no início do século passado. Os olhos quase inúteis de meu avô apagaram-se um pouco mais. Não, não precisa me dizer quem ganhou a eleição.
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