Veganos da periferia

 

Depois que publiquei minha decisão de parar de comer carne por razões políticas, algumas pessoas amigas concordaram com esta opção, mas outras duvidaram da sua aplicabilidade, eficácia e segurança (ver abaixo).

Minha justificativa política para não comer carne tornou-se mais forte nos últimos dias com dois novos artigos:

1) João Moreira Sales, na Folha de São Paulo, sobre como o boi substitui a floresta na Amazônia e causa (com o garimpo) o genocídio dos povos indígenas, como está acontecendo de forma terrível com os Yanomami.

2) George Monbiot, no The Guardian, sobre como a criação de frangos, porcos e visons em escala industrial é o laboratório onde estamos preparando a próxima pandemia de vírus letais originados em aves.

Fica cada vez mais evidente que é justamente o consumo excessivo de carne  – pela minoria de pessoas que pode pagar por ela - que destrói as florestas brasileiras para o gado ou para as culturas de grãos que vão alimentar os animais para serem mortos e consumidos em outras partes do mundo.

Além disso, algumas redes de fornecimento de carne têm relações explícitas com crimes ambientais – ver, por exemplo, as denúncias contra o grupo Madero.

Esse processo predatório e cruel de produção e exportação da carne – e grãos e junto com ela, - de forma subsidiada pelo Estado -, a exportação a baixo preço de nossas florestas - leva ao encarecimento geral dos alimentos, causando fome para parte da população brasileira.



Críticas

Agradeço as leituras e as dúvidas que amigas e amigos me apresentaram, que foram de três tipos:

1) A dieta vegetariana seria inacessível economicamente para os mais pobres;

2) Minha ação política individual seria:

a. Incoerente, se não adotasse outras medidas na mesma direção, como não usar carros ou viajar de avião;

b. Insignificante, diante do tamanho do problema mundial;

3) O consumo de carne seria necessário para a saúde humana.



O preço da dieta

Fui estudar se não comer carne é uma opção apenas para quem pode pagar mais caro pela comida, pois os produtos vegetarianos e veganos seriam supostamente mais caros do que a alimentação industrializada à base de carne e produtos animais.

Encontrei um vídeo interessantíssimo feito por dois jovens e brilhantes irmãos, trabalhadores e residentes na periferia de Campinas, cujo título é “Vegano periférico” (clique aqui para ver), mostrando que sim, é possível ser pobre e vegano!

Além disso, basta uma conta simples. Imagine que você precisa consumir uma dieta, por exemplo, de 2 mil quilocalorias por dia (Kcal). Agora, considere obter essa energia exclusivamente de carnes num dia e de arroz com feijão no outro:

1) No dia de comer exclusivamente carne, precisaria ingerir cerca de 900 g de carne por dia, porque a carne fornece em média 2100 Kcal/kg. No supermercado aonde fui hoje, uma parte do boi estava a 30 reais o quilograma. Então, eu gastaria 27 reais nesse dia para sobreviver apenas com carne.

2) No dia de comer exclusivamente arroz com feijão, precisaria ingerir 880 g de arroz com feijão, porque a mistura fornece em média 2250 Kcal/kg. No mesmo supermercado, o arroz estava a 5 reais e o feijão a 13 reais, portanto a mistura custaria cerca de 9 reais o kg. Então, eu gastaria cerca de 8 reais por dia para sobreviver apenas com arroz e feijão.

Em conclusão, a dieta sem carnes seria  cerca de 3 a 4 vezes mais barata 
(R$ 27/ R$ 8) do que outra com carnes. Como dizem os irmãos veganos da periferia, é possível.


Coerência pessoal

Alguém disse: se quer reduzir o aquecimento global, para ser coerente, então não você poderá mais usar carro, viajar de avião, comprar produtos industrializados à base de petróleo etc.

De fato, eu, branco, homem, pertencente aos 10% mais ricos do país e privilegiado pela estrutura social em que vivemos, estou completamente envolvido por ela e assim contribuo individualmente para o aquecimento global.

Não acho possível ficarmos completamente fora da sociedade atual - capitalista, racista, machista colonialista, meritocrata... e devastadora do ambiente. Nem mesmo as comunidades indígenas - que sobreviveram por milênios sem os produtos do capitalismo – conseguem atualmente se manter à distância e estão sendo dizimadas pela civilização que dominou o planeta nos últimos 500 anos. 

Aliás, vale a pena ver a excelente entrevista da grande antropóloga Manuela Carneiro da Cunha sobre como as culturas indígenas são diferentes do modo de produção do agronegócio. Quem sabe os povos-floresta da Eliane Brum nos ensinem seu modelo de agricultura?

Por outro lado, também como indivíduo tenho pequenas margens de escolha entre ações que posso reduzir ou aumentar minha pegada ecocida. No lugar de privilégio em que me encontro, posso diminuir meu consumo (de carne por exemplo), reciclar, reutilizar, usar combustíveis renováveis, energia solar, viajar apenas o necessário e assim por diante. Ou o contrário.

É claro que não bastam as ações individuais e preciso continuar a me organizar em coletivos, em sindicatos, em partidos políticos e associações para mudanças maiores e mais eficientes. Mas não vejo incoerência em optar por ações possíveis e menos poluidoras dentro dos meus limites individuais.


Ação política ineficaz

De fato, qual é o impacto real de uma pessoa entre bilhões decidir não comer carne? Certamente é muito pequeno, mas não sabemos exatamente o que acontece a partir de uma determinada ação humana.

É claro que entre o gesto individual ao meu alcance - não comer carne - e mudar a economia do planeta há milhares de passos a serem dados pelas minhas curtas pernas. Pode ser apenas um deles a cada dia, mas a direção do meu caminhar pretendo que seja no sentido de mudar o mundo, sim.

Então, ao contrário da ideia de que se não posso fazer tudo, então não faço nada, prefiro pensar como o filósofo William James, que disse “aja como se o que você faz fizesse diferença”. Aliás, este é o fundamento da ética, o princípio de que todas as nossas ações afetam as demais pessoas.


A questão da saúde

Outra pessoa amiga me questiona se não comer carne poderia causar carência de vitaminas.

Ao contrário, dietas vegetarianas parecem produzir mais benefícios do que riscos para a saúde, como mostra um amplo e recente estudo científico realizado por nutricionistas da Universidade de Brasília.

A equipe mostra também que, de fato, dietas veganas, ou seja, sem qualquer produto de origem animal, tem maior chance de produzir deficiências de alguns chamados microelementos nutricionais (Vitamina B12, zinco, cálcio e selênio), ainda que estas deficiências não estejam correlacionadas com grandes problemas clínicos, exceto maior incidência de fraturas em veganos de longa data.

Assim, considero que não comer carnes não parece ser motivo de preocupação para quem pode ter uma dieta variada.

De qualquer forma, não resisto em perguntar se quem me causaria danos primeiro, alguma improvável deficiência nutricional assintomática ou a crise climática real e que já está acontecendo?


Insisto: comer carne faz muito mal para quem não pode comer carne e ameaça a vida de todes que vivem no mesmo planeta.


LOR


(Repito acima como ilustração a charge que publiquei em novembro de 2022 com artigo de Monbiot sobre carne sintética sob o título Stop Agro Now – Picanha limpa para todes!)

Veja também esta reportagem do site "OUTRAS PALAVRAS" sobre como a indústria da carne suborna cientistas para lançar dúvidas sobre o papel da pecuária no aquecimento global, como fazem as petrolíferas e fabricantes de cigarros. 



 


Comentários

  1. Comer carne bovina diariamente, sabemos, não é dieta recomendável para ninguém. Em vez de abolir completamente a dieta animal - a de maior valor proteico - minha sugestão é a de diminuir seu consumo
    substituindo por produtos vegetais. -que são ricos em hidratos de carbono-, alternando o consumo de uns e outros ao logo dos dias. Por que não um bifinho ou um pescado de vez em quando?

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