O homem que amava os cachorros - e a cadelinha Resistência
O romance de Padura, baseado em fatos, fez-me sentir profundamente velho e desiludido com a humanidade, sentimento este compartilhado com um dos personagens do livro nos seus 58 anos, o líder comunista Liev Davidovitch, o Trotsky, depois de quase uma década de exílio forçado pelos stalinistas, segundo nos relata o escritor cubano.
Como sabem aqueles que estudaram um pouco de História, Trotsky foi assassinado no México, em 1940, por Ramón Mercader, um jovem espanhol comunista que foi recrutado durante a Guerra Civil Espanhola para se tornar agente secreto a serviço de Stalin, o ditador que dominou a união soviética - e os partidos comunistas em todo o mundo - por cerca de 30 anos.
Como sabem aqueles que estudaram um pouco de História, Trotsky foi assassinado no México, em 1940, por Ramón Mercader, um jovem espanhol comunista que foi recrutado durante a Guerra Civil Espanhola para se tornar agente secreto a serviço de Stalin, o ditador que dominou a união soviética - e os partidos comunistas em todo o mundo - por cerca de 30 anos.
Trotsky e Stalin divergiram desde o início sobre os caminhos da Revolução Russa: Trotsky pensava que o socialismo somente seria alcançado por uma revolução permanente em todos os países (uma visão internacionalista), enquanto Stalin defendia que o socialismo poderia ser desenvolvido em países isolados (uma visão nacionalista) e deveria ser implantado primeiro na Rússia e aquela experiência revolucionária deveria ser defendida por todos os comunistas do mundo.
Sabemos também que, enquanto existiu, a União Soviética influenciou politicamente e apoiou a revolução cubana contra os países capitalistas, especialmente para enfrentar o bloqueio econômico genocida dos Estados Unidos contra Cuba, mas a miséria econômica tomou conta da ilha depois da queda do muro de Berlim no final da década de 80.
Neste cenário geopolítico, o escritor Leonardo Padura recupera a história dos últimos 80 anos (o livro foi publicado em 2009 em Cuba - 2013 no Brasil), dando vida ficcional a Trotsky, Mercader e Iván, este último um personagem-escritor cubano que passa a vida frustrado pela miséria econômica, pela falta de liberdade de expressão e por aquilo que ele acredita ser a degeneração dos princípios socialistas em seu país. No entanto, Iván tem a suposta oportunidade de encontrar Ramón Mercader que teria lhe revelado sua história trágica e exemplar.
Escritas no formato dos romances policiais (estilo familiar e reconhecido do autor), somos levados pelas palavras de Padura a seguir passo a passo as trajetórias de Trotsky e Mercader rumo ao seu encontro fatal na casa de Trotsky, em Coyoacan, onde Thalma e eu estivemos visitando seu túmulo em 2014, e vimos as marcas das balas deixadas nas paredes da casa durante um atentado anterior feito por stalinistas, ao qual Trotsky inexplicavelmente sobrevivera.
A narrativa intercalada entre os três personagens - Trotsky, Ramón e Iván - nos permite compreender o que motiva cada um deles, sua fragilidade diante do peso da história em suas vidas e as forças que determinam inapelavelmente cada uma de suas ações, apesar de todas as angústias e incertezas que cada um deles precisa enfrentar para desempenhar seu papel, a um só tempo involuntário, mas aparente e penosamente escolhido por sua própria vontade.
O recurso da ficção para preencher os vazios históricos transforma cada um dos personagens em seres humanos verossímeis e assim somos tomados pela compaixão por aquelas pessoas capturadas na complexa trama política que constrói o mundo que habitamos.
Muitas ideias, que ainda são debatidas pelas pessoas de esquerda, recebem atenção no esforço histórico do Leonardo Padura. Uma delas, talvez a mais importante para mim, é o resgate da autocrítica de Trotsky sobre o chamado “centralismo democrático” - um princípio vigente em muitos partidos comunistas - estabelecido pelos primeiros líderes da Revolução Russa - Lenin e Trotsky inclusive - que impedia as dissidências internas no partido comunista. O personagem Trotsky admite que este centralismo democrático poderia ser a causa da centralização de poder que levou à burocracia stalinista e que resultou na morte de milhões de pessoas. Ou seja, a democracia proletária seria fundamental para o socialismo.
Outro destaque na recuperação da história deste assassinato político é a confirmação de que a mentira organizada e sistemática sempre foi instrumento de luta pelo poder. No entanto, a decepção dos protagonistas - e nossa - com este método mostra que mentir é recurso incompatível com o compromisso inalienável com a verdade que deve caracterizar a esquerda – que, inclusive, aspira um caráter científico em suas postulações. Em outras palavras, a esquerda não pode mentir sobre seu projeto político, enquanto a direita precisa ocultar a verdade sobre a sociedade injusta que defende.
Na juventude, ingressei na política num grupo de origem stalinista, mas que desobedeceu à orientação de Moscou e decidiu pela resistência armada contra a ditadura militar brasileira. Aos poucos, adotei uma visão de mundo mais próxima aos trotskistas. Mais tarde, me convenci de que uma revolução política só aconteceria e seria duradoura se a maioria das pessoas desejarem tais novos tempos, algo mais perto dos pensamentos de Gramsci. Hoje, me agarro a todas as boas ideias, de onde vierem, que suponho que possam aumentar a igualdade entre as pessoas.
Voltando ao “homem que amava os cachorros”, depois de cerca de 600 páginas amargas, repletas de conspirações, cinismo, desencanto e violência - e muitas vezes repetitivas – contendo o detalhamento dos inúmeros crimes cometidos pelos stalinistas, dentro e fora da Rússia, especialmente durante a Guerra Civil Espanhola, o livro de Leonardo Padura deixou-me às voltas com o lado mais sombrio dos seres humanos, para o qual não ofereceu qualquer saída. Restou-me um sentimento de estoica esperança, uma esperança do tipo daquela que existe diante de um corpo parcialmente tomado pela gangrena: que seja possível a amputação.
Então, comecei a procurar por tesouras e bisturis, mas além de não mais confiar em suas lâminas, perguntei-me se não seriam mais efetivas as vacinas? Vacinas para serem amplamente distribuídas na população: contra a meritocracia, contra o racismo, contra o machismo, contra o nacionalismo fascista, enfim, contra o capitalismo.
Quem sabe, pensei - recuperando os batimentos cardíacos, - ainda temos tempo para transformar a civilização atual, antes que o veneno que ela injetou nas próprias veias encerre sua existência violenta na crise climática que já está em curso?
Decidi publicar estes pensamentos depois que me vieram lágrimas de esperança - que lavaram minhas retinas cansadas - ao ver Lula subir a rampa com a cadelinha Resistência - vira-latas recolhida das ruas pelos militantes que permaneceram em vigília durante a prisão de Lula em Curitiba - e, em seguida, receber a faixa presidencial de um grupo de pessoas brasileiras exemplares.
Sabemos também que, enquanto existiu, a União Soviética influenciou politicamente e apoiou a revolução cubana contra os países capitalistas, especialmente para enfrentar o bloqueio econômico genocida dos Estados Unidos contra Cuba, mas a miséria econômica tomou conta da ilha depois da queda do muro de Berlim no final da década de 80.
Neste cenário geopolítico, o escritor Leonardo Padura recupera a história dos últimos 80 anos (o livro foi publicado em 2009 em Cuba - 2013 no Brasil), dando vida ficcional a Trotsky, Mercader e Iván, este último um personagem-escritor cubano que passa a vida frustrado pela miséria econômica, pela falta de liberdade de expressão e por aquilo que ele acredita ser a degeneração dos princípios socialistas em seu país. No entanto, Iván tem a suposta oportunidade de encontrar Ramón Mercader que teria lhe revelado sua história trágica e exemplar.
Escritas no formato dos romances policiais (estilo familiar e reconhecido do autor), somos levados pelas palavras de Padura a seguir passo a passo as trajetórias de Trotsky e Mercader rumo ao seu encontro fatal na casa de Trotsky, em Coyoacan, onde Thalma e eu estivemos visitando seu túmulo em 2014, e vimos as marcas das balas deixadas nas paredes da casa durante um atentado anterior feito por stalinistas, ao qual Trotsky inexplicavelmente sobrevivera.
A narrativa intercalada entre os três personagens - Trotsky, Ramón e Iván - nos permite compreender o que motiva cada um deles, sua fragilidade diante do peso da história em suas vidas e as forças que determinam inapelavelmente cada uma de suas ações, apesar de todas as angústias e incertezas que cada um deles precisa enfrentar para desempenhar seu papel, a um só tempo involuntário, mas aparente e penosamente escolhido por sua própria vontade.
O recurso da ficção para preencher os vazios históricos transforma cada um dos personagens em seres humanos verossímeis e assim somos tomados pela compaixão por aquelas pessoas capturadas na complexa trama política que constrói o mundo que habitamos.
Muitas ideias, que ainda são debatidas pelas pessoas de esquerda, recebem atenção no esforço histórico do Leonardo Padura. Uma delas, talvez a mais importante para mim, é o resgate da autocrítica de Trotsky sobre o chamado “centralismo democrático” - um princípio vigente em muitos partidos comunistas - estabelecido pelos primeiros líderes da Revolução Russa - Lenin e Trotsky inclusive - que impedia as dissidências internas no partido comunista. O personagem Trotsky admite que este centralismo democrático poderia ser a causa da centralização de poder que levou à burocracia stalinista e que resultou na morte de milhões de pessoas. Ou seja, a democracia proletária seria fundamental para o socialismo.
Outro destaque na recuperação da história deste assassinato político é a confirmação de que a mentira organizada e sistemática sempre foi instrumento de luta pelo poder. No entanto, a decepção dos protagonistas - e nossa - com este método mostra que mentir é recurso incompatível com o compromisso inalienável com a verdade que deve caracterizar a esquerda – que, inclusive, aspira um caráter científico em suas postulações. Em outras palavras, a esquerda não pode mentir sobre seu projeto político, enquanto a direita precisa ocultar a verdade sobre a sociedade injusta que defende.
Na juventude, ingressei na política num grupo de origem stalinista, mas que desobedeceu à orientação de Moscou e decidiu pela resistência armada contra a ditadura militar brasileira. Aos poucos, adotei uma visão de mundo mais próxima aos trotskistas. Mais tarde, me convenci de que uma revolução política só aconteceria e seria duradoura se a maioria das pessoas desejarem tais novos tempos, algo mais perto dos pensamentos de Gramsci. Hoje, me agarro a todas as boas ideias, de onde vierem, que suponho que possam aumentar a igualdade entre as pessoas.
Voltando ao “homem que amava os cachorros”, depois de cerca de 600 páginas amargas, repletas de conspirações, cinismo, desencanto e violência - e muitas vezes repetitivas – contendo o detalhamento dos inúmeros crimes cometidos pelos stalinistas, dentro e fora da Rússia, especialmente durante a Guerra Civil Espanhola, o livro de Leonardo Padura deixou-me às voltas com o lado mais sombrio dos seres humanos, para o qual não ofereceu qualquer saída. Restou-me um sentimento de estoica esperança, uma esperança do tipo daquela que existe diante de um corpo parcialmente tomado pela gangrena: que seja possível a amputação.
Então, comecei a procurar por tesouras e bisturis, mas além de não mais confiar em suas lâminas, perguntei-me se não seriam mais efetivas as vacinas? Vacinas para serem amplamente distribuídas na população: contra a meritocracia, contra o racismo, contra o machismo, contra o nacionalismo fascista, enfim, contra o capitalismo.
Quem sabe, pensei - recuperando os batimentos cardíacos, - ainda temos tempo para transformar a civilização atual, antes que o veneno que ela injetou nas próprias veias encerre sua existência violenta na crise climática que já está em curso?
Decidi publicar estes pensamentos depois que me vieram lágrimas de esperança - que lavaram minhas retinas cansadas - ao ver Lula subir a rampa com a cadelinha Resistência - vira-latas recolhida das ruas pelos militantes que permaneceram em vigília durante a prisão de Lula em Curitiba - e, em seguida, receber a faixa presidencial de um grupo de pessoas brasileiras exemplares.
Ainda não me aposentei da política.
Lor
PS 2 : Obrigado pelas conversas
Lor
PS 1 - O poema de Maiakovski, que recebeu música de Caetano Veloso e Nei Costa, intitulada O Amor, foi gravada por Gal Costa. Ouvir dezenas de vezes esta canção ajudou-me a ressuscitar depois da leitura do livro "O homem que amava os cachorros".
Talvez
Quem sabe
Um dia
Por uma alameda
Do zoológico
Ela também chegará
Ela que também
Amava os animais
Entrará sorridente
Assim como está
Na foto sobre a mesa
Ela é tão bonita
Ela é tão bonita
Que na certa
Eles a ressuscitarão
O século trinta vencerá
O coração destroçado já
Pelas mesquinharias
Agora vamos alcançar
Tudo o que não
Podemos amar na vida
Como o estrelar
Das noites inumeráveis
Ressuscita-me
Ainda
Que mais não seja
Porque sou poeta
E ansiava o futuro
Ressuscita-me
Lutando
Contra as misérias
Do cotidiano
Ressuscita-me
Quero acabar de viver
O que me cabe
Minha vida
Para que não mais existam
Amores servis
Ressuscita-me
Para que ninguém mais
Tenha de sacrificar-se
Por uma casa
Um buraco
Ressuscita-me
Para que a partir de hoje
A partir de hoje
A família se transforme
E o pai seja
O Universo
E a mãe
Seja no mínimo
A Terra
A Terra
A Terra
PS 2 : Obrigado pelas conversas
Agradeço as leituras do meu rascunho sobre o livro do Padura, iniciado no ano passado, e as conversas sobre este tema: Thalma, Maria das Graças de Oliveira, Álvaro Nascimento, Ernesto Rodrigues, Eduardo Gontijo, Ramon Cosenza, Regis Gonçalves, Leonardo Diniz, Mirtes e Beirão, Anna Bárbara e Fernando Proietti, Fátima e Ivo Busko. É preciso registrar que praticamente todas as pessoas que leram o livro gostaram imensamente, especialmente meu irmão Ernesto.
PS 2: Comentário do poeta Regis Gonçalves:
Reconheço-me nas reflexões contidas nesse seu texto, cheio de dúvidas tais como as minhas. Não faz muito tempo ouvi de um amigo, que lutou na guerrilha urbana e foi preso e exilado: "Não sou mais revolucionário".
Isso me fez pensar em minhas próprias escolhas político-ideológicas ao longo de meus 82 anos de vida. Para alguém afirmar-se como revolucionário, como foi Trotsky, é preciso avaliar se poderá ser implacável, consigo próprio e com terceiros, tal como o renegado do stalinismo.
Trotsky teve um papel decisivo na longa e cruel guerra civil que se seguiu à Revolução de 1917. Fez inacreditáveis sacrifícios pessoais, mas também foi capaz de fazer reféns e até fuzilá-los, assim como executar inimigos capturados. Acho que eu não seria capaz de ir tão longe. Sou, portanto, obrigado a concordar com meu companheiro ex-guerrilheiro. Será que a idade nos faz amolecer?
Há tempos cheguei à conclusão de que a grande lição que o regime autoritário inaugurado em 1964 me propiciou foi o reconhecimento do valor da democracia. Se é imperfeita, não apenas no nosso, mas em todos os países que a adotam, meu dever é de lutar para ampliá-la com novas conquistas, fazendo o possível para que o povo chegue mais perto das decisões que lhe afetam a vida.
Agradeço por me obrigar a por na mesa os dilemas éticos implícitos em quaisquer de nossos compromissos existenciais.
Abraço apertado do amigo
Regis
Caro LOR
ResponderExcluirVocê me provoca, ilumina, sacode, agita, convoca e deixa aflita minha alma inconformada com essa Humanidade atrasada e desigual onde a Blackrock tritura a poesia das gentes e do planeta.
Tento ver um caminho democrático nesse novo-velho governo mas não consigo deixar de ver o poder avassalador do capital nacional e internacional.
Falta-nos aquela soberania mesmo não totalmente revolucionária, mas que valeu um pouco na época do Getúlio, JK e Itamar.
Mayakovsky Que você citou me balança muito. Inspirou a poesia do mundo, fundou uma base poética onde bebemos sabedoria e entendimento mas ele mesmo desistiu da humanidade aos 36 anos.
Também me coloco. Maya, Caetano, Gal, todos nos dando suporte. Continuemos elaborando a dinâmica da dúvida nunca respondida nem satisfeita. A história continua louca.
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