O humorista presidente e o presidente palhaço

 



Nos últimos dias, tenho percebido o uso pejorativo dos termos humorista e palhaço quando algumas pessoas se referem ao presidente Zelensky, da Ucrânia. 

Como sou cartunista, uma das artes menores que compõem este desprestigiado mundo dos humoristas, vou defender o uso correto do xingamento (ou humorista, ou palhaço), para que o objetivo de quem agride Zelensky seja alcançado, ou seja, ajudar Putin na invasão militar em curso.

Humorista e palhaço não praticam a mesma arte. Humoristas produzem o gozo com algum novo modo de ver a realidade, podendo ser de esquerda (quando criticam os poderosos) ou de direita (quando seus chistes se dirigem aos oprimidos).

Palhaços tentam arrancar o riso perverso que existe em nós, debochando dos fracos, velhos, negros, pobres, imigrantes, mulheres, homossexuais, travestis, velhos e portadores de necessidades especiais. Portanto, um modo retrógrado, racista, machista e elitista de ver o mundo, ou seja, palhaços são de direita.

Por exemplo, comparemos dois indivíduos que têm feito muitas piadas nos últimos anos, os presidentes populistas Zelensky e Bolsonaro, ambos eleitos na onda de frustração com a socialdemocracia que vem assolando muitos países.

Zelensky criou um programa de humor na TV em 2015, no qual fazia o papel de um presidente ucraniano, criticando os desmandos comuns nas sociedades corrompidas pelo poder esmagador do grande capital. Ainda que estivesse numa democracia, suas baterias eram apontadas contra o então poderoso presidente da Ucrânia, que acabou derrotado nas urnas com mais de 70% dos votos para Zelensky, justamente pela popularidade que ele ganhou em seu programa humorístico.

Bolsonaro, apesar de ver diminuir sua popularidade, insiste em fazer piadas para um público restrito e fiel, e zomba com seu riso grosseiro e sádico das 640 mil pessoas fracas que não resistiriam à gripezinha da COVID e morreram, mas tudo bem, porque ele não é coveiro. Sempre que possível, ele ridiculariza negros, quilombolas, asiáticos, prefere ter um filho morto do que um filho viado e não estupra mulher se ela for feia, lança suspeitas sobre as vacinas e depois desmente diante da justiça: brincadeirinha…Coloca um general no ministério da saúde e manda ele dizer que combater a pandemia é simples assim: um manda e o outro obedece! E caem na gargalhada.

Acho que já deu para entender o que é um humorista e o que é um palhaço.

Então, se você quer ajudar Putin a ganhar a guerra, pode atacar Zelensky como um político perverso de direita, chamando-o de palhaço. Mas, cuidado, porque Putin é tão amigo de um certo palhaço, que seguiu seu conselho e não invadiu a Ucrânia.

Meu genro Juliano e meu neto Pedro, desde pequenos, tinham medo de palhaços, porque acreditavam que palhaços matam pessoas.

Juliano e Pedro têm toda razão.




Lor
Março 2022

Comentário do meu amigo Luciano Prado, professor da UFMG.

“Lor, esse seu texto é ESPECIALMENTE brilhante e comovente. Vejo comentaristas de política nacional (alguns de quem até gosto, embora com ressalvas) criticando de forma cáustica o presidente ucraniano. O termo “humorista” aparece sempre como um ato falho: embora ressaltem seu respeito pelos humoristas, ele é um humorista afinal. É quase como um “preto, mas limpo”! Os meios de comunicação europeus, em uníssono, ressaltam a bravura, o autocontrole de Zelensky, e principalmente, como ele “cresceu” na crise e transcendeu para além da figura de um chefe do Executivo, aglutinando seu povo em defesa de uma agressão patente de um autocrata alucinado. Leio de Frankfurter Allgemeine, Financial Times e LeMonde, mais conservadores, a El País, TheGuardian, Repubblica, mais à esquerda. Sem exceção, todos respeitam a capacidade de Zelensky defender seu país e admiram a figura que se tornou! Pode ter deficiências, cometer erros? Claro, todos nós! Mas criticá-lo com a acidez que vi aqui, me faz soar um alarme: ou esses jornalistas não sabem do que falam, ou intencionam algo com seus comentários. Não são bolsonaristas (Kennedy Alencar e Reinaldo Azevedo). Uma coisa é certa: ou são brilhantes, muito melhores que toda a mídia séria da Europa, ou querem aparecer como pensadores “fora da caixa” no nosso mundo tupiniquim. Assim penso e sinto. Quem sofre é o povo. É o ucraniano, a russa, o moldávio, romeno, polonês. Quem briga não passa fome nem tem filhos mortos. Em tempo: palhaços sempre me deram medo! Não sei do quê, mas medo!”

Comentário do amigo Carlos Starling, médico e escritor:

“Sua definição de palhaço e humorista, com identificação dos personagens desse conflito foi simplesmente fantástica. 
Quando eu li, imediatamente pensei, era isso que eu queria  ter escrito!  
Minha filha, Sophia, também tem medo de palhaço.”

2/4/22
Foi com satisfação que li hoje este comentário do Hélio Schwartsman: Humor é subversivo e mete medo em tiranos... o comediante e o parvo. Clique aqui
 

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