A evolução humana é feminina

 


Depois de quarenta anos estudando a evolução humana, descobri que a sua representação gráfica mais comum, a sequência de primatas machos que deixam a postura quadrúpede para se tornarem bípedes e, ao adquirirem armas e roupas, se tornam, por fim, um homem moderno, contém apenas uma parte da verdade.

De fato, a ciência considera que um dos passos decisivos na origem da nossa espécie sapiens foi a seleção natural da capacidade de caminhar longas distâncias na postura ereta, o que ocorreu há cerca de 6 milhões de anos num grupo de hominídeos, os quais deram origem à linhagem subsequente dos Homo, da qual derivamos. Mas este passo fundamental foi dado por fêmeas e não por machos.

Como aconteceu?

A Terra, como todo o Universo, vem diminuindo a sua temperatura global progressivamente, apesar de ciclos intermitentes de curtos períodos de reaquecimento, como este que vivemos. Desde a extinção dos dinossauros, há 62 milhões de anos, a temperatura média do planeta diminuiu cerca de 14 graus Celsius (ver figura abaixo). Com o esfriamento do planeta, mais gelo foi formado nos polos, retirando água da atmosfera, o que abaixou o nível dos oceanos e diminuiu a umidade relativa do ar. O ar mais seco levou ao retraimento das florestas úmidas, que deram lugar às florestas secas, depois às savanas e, por fim a alguns desertos.

Numa parte da África, habitada por primatas de grande porte (semelhantes aos gorilas e chimpanzés atuais), este fenômeno de redução da umidade abriu novos nichos ecológicos, nos quais havia a oportunidade de mais alimentos, mas também a necessidade de se percorrer maiores distâncias para encontrá-los, num ambiente com menor densidade de árvores. Nesta nova condição ambiental, a locomoção quadrúpede dos primatas existentes era menos eficiente do que o andar bípede, além da postura ereta trazer outras vantagens, como um campo de visão mais abrangente e o corpo receber menor radiação solar direta, fora das sombras.

Sabemos que os filhotes das fêmeas primatas se agarram aos pelos da mãe enquanto elas caminham. No entanto, à medida que alguns primatas evoluíram com aumento do tamanho corporal, para manterem a temperatura interna adequada vivendo em ambientes quentes e úmidos, houve redução progressiva dos pelos corporais. Menos pelos corporais significa um aumento no risco de quedas das crias enquanto as mães se movimentam. Assim, sair das sombras das florestas úmidas e enfrentar o calor das florestas secas e savanas durante o dia constituiu-se num duplo desafio evolutivo: perder mais pelos (e aumentar a capacidade de suar, para evaporar a água e dissipar calor) e manter os filhotes vivos durante as longas caminhadas. A solução, já observada ocasionalmente em primatas quadrúpedes, seria carregar os filhotes no colo. Assim, a pressão evolutiva foi aumentando o uso dos braços para carregar a cria, estimulando o uso da caminhada bípede, que acabou por se estabelecer anatomicamente e funcionalmente.

Por sua vez, a mudança da postura quadrúpede para a bípede implicou em adaptações anatômicas complementares e simultâneas que desencadearam novas etapas evolutivas. O estreitamento dos quadris das fêmeas, necessário para a eficiência da caminhada bípede, dificultaria a passagem da cabeça do filhote no momento do parto, o que teria induzido progressivamente uma antecipação do nascimento, resultando numa fragilidade corporal e imaturidade cerebral do recém-nascido.

A fragilidade e imaturidade neurológica abriram caminho para duas outras adaptações cruciais na evolução humana: maior necessidade de cuidados parentais e por mais tempo – gerando a necessidade da formação de grupos sociais estáveis, assim como uma grande plasticidade cerebral e capacidade de aprendizado depois do nascimento.

Aquelas fêmeas primatas, portanto, apesar de pequenas, deram um grande passo para a humanidade. Foram nossas mães antecessoras que abriram a porta para a evolução típica dos humanos: grupos sociais cada vez maiores (mais cuidados coletivos), cérebros cada vez maiores (para o aprendizado complexo do convívio social, onde, por exemplo, a inteligência emocional é fundamental), domínio do fogo, ferramentas, culturas, civilizações e ciência, até o último grande salto para os telescópios espaciais.

E os machos na evolução humana?

Para os machos restou a eterna disputa de status entre si por meio da força física – diga-se, de passagem, desnecessária para nossa evolução tipicamente social, pois sobrevivemos quando somos muitos e unidos. Nós, homens, temos 30% a mais de tamanho corporal e força do que as mulheres, o que resultou, infelizmente, numa estrutura patriarcal, que escravizou as mulheres e as explora até o presente.

Idealizo que seríamos bem diferentes sem a dominação machista atrapalhando a evolução humana feminina. Talvez uma sociedade mais igualitária, com mais sexo e menos guerras e, provavelmente, muito mais inteligente.

Uma sociedade sem o machismo estrutural que me fez demorar tantos anos para escrever o título desta crônica.



Lor

Março 22



PS: o cartum acima fez parte de uma palestra que fiz na Universidade Federal de Ouro Preto em 2014. 
A figura abaixo, também.






Comentários

  1. É vivendo e aprendendo sempre. E aprendendo com ciência e consciência. Obrigada, Lor, mais uma vez pela aula de humanismo, sem preconceitos e misoginia. Uma aula de valorização da mulher só possível a um homem de "alma" feminina.

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  2. Muito bom! O melhor é ter esperança de que se Lor pode evoluir tanto em seu conhecimento e consciência outros machos também podem.

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