Diário do Apocalipse
Escrevo também para ouvir o que as pessoas pensam sobre. Assunto.
Depois de ler meu texto sobre as amizades perdidas durante a vida por causa da divergência de opiniões, o amigo Nilo me contou que quando se aposentou e voltou para sua terra natal, onde vem reconstruindo uma fazenda da família, ele conheceu pessoas nas vizinhanças e estabeleceu algumas amizades. Empoderado pela sabedoria adquirida como cientista na universidade, tentava convencer os vizinhos sobre maneiras mais racionais de realizar algumas coisas que lhe pareciam equivocadas, especialmente na conservação da natureza. Depois de uns meses, um dos moradores disse: Seu Nilo, se o senhor quiser cortar muito reto, vai ficar sozinho aí.
Outro amigo, o Nikolas, reagiu com solidariedade, propondo-se a tomar comigo uma cerveja para dissiparmos a solidão epidêmica. Receoso, ainda desacostumado ao fim da pandemia por decreto, disse-lhe que a cerveja seria bem-vinda quando vencêssemos os cinco cavaleiros do Apocalipse: a pandemia mundial, as guerras nacionalistas, os bolsonarismos internacionais, a crise climática global e o envelhecimento pessoal. Ele respondeu: Vai ter que ser antes!
Por isso, saí caminhando no sol deste quase outono em busca de alguma energia para vencer o Apocalipse. Em poucos minutos, meu isolamento crônico online foi submetido ao choque com a realidade. Na entrada do parque, com a deferência genérica de “doutor”, recebi o convite do funcionário para entrar sem ter que preencher o formulário de declaração de haver recebido a vacina contra a febre amarela. (Sim, febre amarela e não COVID).
Teria o guarda me tomado por um dos frequentadores habituais do parque, supostamente já cadastrado contra a febre amarela (o que nunca fiz)? Ou teria me reconhecido como um dos membros da Associação Lagoa do Nado, que ajudou a construir o próprio parque? Ou fui cúmplice de um momento do racismo estrutural porque quem estava à minha frente preenchendo o formulário eram duas pessoas negras?
Nestas dúvidas, já dentro do parque, pensei em voltar para meu lugar na fila, preencher a ficha da vacina e esclarecer o porquê me fora permitido passar adiante e, talvez, denunciar o possível racismo. Mas o funcionário do parque também era negro e vacilei se meu comportamento seria “tentar cortar reto demais”, como dissera o vizinho do Nilo.
Indeciso, continuei caminhando, sem coragem para voltar e enfrentar a situação, com a certeza de que ainda não sou antirracista de forma automática, ou seja, preciso pensar duas vezes.
Talvez na próxima vez eu esteja mais preparado. Se alguém me chamar de doutor, vou rasgar ali mesmo meu diploma de branco e perguntar: por quê?
Saí para recuperar as energias e acabei por reconhecer o sexto cavaleiro ao Apocalipse, o racismo.
Lor
Março 22
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