A outra margem do conflito

 

É mesmo difícil escolher um dos lados na guerra iniciada pelos russos contra os ucranianos, se ficarmos pensando na ambiguidade dos personagens envolvidos, como sugere o texto bem humorado do jornalista Moisés Mendes. Mas o conflito se torna mais compreensível, quando percebemos aquilo que muitos dos protagonistas têm em comum: a desconstrução da democracia.

Além do apoio aos russos, há mais pontos de união entre bolsonaristas, que se dizem de direita, e certos grupos, que se dizem de esquerda, do que a gente imagina. Vou personalizar estes dois supostos polos com os nomes de Hitler e Stalin.

Hitler desconfia da democracia pois a considera corrompida por leis que ameaçam os princípios da tradição, família e propriedade. Stalin, por outro lado, acha a democracia dominada pela grana da burguesia, muito lenta e incapaz de acabar com as desigualdades econômicas e sociais.

Hitler defende governos fortes, ditaduras militares e autocracias exercidas pela elite econômica em benefício da nação, enquanto Stalin defende a ditadura do proletariado, exercida pelo partido único, uma suposta elite política, também em benefício do povo.

Hitler é nacionalista, contra a globalização, porque ela mistura raças diferentes e degenera o valor sagrado da pátria. Stalin também é nacionalista e acredita na existência de um povo especial dentro de sua própria fronteira, que deve ser protegido do imperialismo norte-americano.

Ambos encaram a pandemia de COVID com teorias conspiratórias e desafiam os conhecimentos científicos com posturas antivacinas, seja porque têm imunidade de rebanho, seja porque são protegidos pela alimentação natural ou porque não querem dar lucro para as multinacionais farmacêuticas.

Ambos ignoram a crise climática e desprezam o meio ambiente, negando que somos todos habitantes de um único e ameaçado planeta, e destroem a natureza com suas caminhonetes cabine dupla, desmatamento, queimadas ou usinas hidroelétricas na floresta amazônica.

Ambos acreditam na guerra como processo de purificação ou revolução da humanidade e na necessidade da força policial para o controle social ou reeducação das mentes. Assim, cultuam as forças armadas como parte natural e indispensável da vida social e política.

Ambos são estruturalmente machistas e homofóbicos.

A organização econômica sonhada por ambos é o capitalismo de estado, no qual um grupo restrito de chefes-empresários utiliza os recursos públicos em benefício próprio, com a cobertura das polícias secretas e das leis especiais. Por isso, Hitler e Stalin falam da China com indisfarçáveis inveja e admiração.

Finalmente, Hitler nega os crimes dos nazistas no Holocausto e Stalin nega os crimes do regime soviético no Holodomor.

Ambos estão envolvidos na invasão da Ucrânia, mas não estão em guerra entre si. Ao contrário, fizeram um acordo, semelhante àquele da Segunda Grande Guerra, para atacarem a humanidade, desgastando os organismos internacionais de paz construídos lentamente nas últimas décadas, como a ONU e os direitos humanos.

Destruída a democracia eles poderão, enfim, se enfrentar numa luta gloriosa e apocalíptica entre o Bem e o Mal, embora cada um advogue para si a exclusividade do Bem. O maniqueísmo triunfará, portanto, na perspectiva de Hitler ou Stalin.

Enquanto isso, nesta invasão da Ucrânia, além das vidas perdidas, sairemos ainda mais pobres e com menos direitos, pois quanto mais fraca a democracia, maior é a exploração dos 90 por cento que produzem as riquezas. E proporcionalmente maior será o lucro dos senhores da guerra, os capitalistas que se apoiam em Hitler e Stalin.

Então, só me resta escolher o verdadeiro OUTRO LADO deste conflito: a defesa da paz, que só pode ser duradoura se não houver desigualdades sociais, como imagino que acontecerá no socialismo alcançado por meio da democracia econômica e política.

Lor

Março 22

 


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