A vida como ela pode ser – Parte 3 de 5
O POST DE ONTEM terminou com Romeu perguntando ao Ivo se ficamos com duas opções, que podem ser complementares: o processo evolutivo da matéria gerou os seres vivos e o subprocesso vida:
(1) então a vida é um capítulo da física, pois seu surgimento estaria incluído no processo universal?
(2) ou a vida não é um capítulo da física, pois tem características que são contingentes e próprias dela, que não estavam previstas na física, só seriam possibilidades que dependeram de contextos particulares, p. ex., os terráqueos?
IVO BUSKO - Dentro de meu limitado conhecimento nessa área, sei que ainda não existem formulações para a origem da matéria escura, além da hipótese básica de que ela teria se formado junto com a matéria bariônica, ambas resultando do mesmo processo (fases iniciais do Big Bang). Esse cenário deverá melhorar quando for possível dizer alguma coisa sobre a constituição e natureza mesmas dessa matéria (tipos de partículas, números quânticos etc.).
Também, pelo que sei, não existem medidas da quantidade de matéria escura ao longo do tempo, a não ser evidências indiretas de que ela estaria presente desde o início. Isso porque ela parece desempenhar papel fundamental na estruturação posterior do Universo, quando os aglomerados e superaglomerados de galáxias (resultantes basicamente da força gravitacional com origem na matéria bariônica) se arranjam em grandes “filamentos”, cuja estrutura seria governada principalmente pela gravidade oriunda da matéria escura. Esta estrutura, por sua vez, estaria refletindo as estruturas primordiais observadas indiretamente nas flutuações da radiação de fundo em micro-ondas (isso é meu entendimento superficial, porque não sou expert no assunto).
Imagino que em breve haverá um grande avanço nessa área, com a combinação de dados provenientes de observatórios de ondas gravitacionais (como LIGO e Virgo), com dados provenientes de telescópios infravermelhos e rádio de porte gigante (James Webb no espaço, ELT no Atacama, SKA n Austrália e África do Sul).
Quanto à evolução temporal da energia escura, ela é parte fundamental do modelo canônico de Universo (chamado L-CDM). Esse modelo prevê (ou assume a priori) a constância da densidade da energia escura ao longo da evolução do Universo.
Como densidade = energia/volume, e o volume aumenta à medida que o Universo progride em sua evolução, isso implica que a energia escura seria constantemente criada do nada, para continuamente preencher o espaço com uma densidade de energia constante.
Isso tem implicações interessantes: uma delas, é que descarta todos os cenários de Universo cíclico, porque à medida que o Universo envelhece, a energia escura é cada vez mais preponderante, já que a densidade das energia gravitacional e as outras, associadas às forças de curto alcance, decrescem à medida que o Universo se expande.
Assim, a energia escura cada vez mais dominaria a dinâmica do Universo, com sua ação de repulsão, até que lá no futuro distante ela seria praticamente a única coisa a governar a estrutura do Universo, com uma ação de repulsão explosiva fazendo tudo se afastar de tudo, até as próprias partículas elementares, em velocidade maior do que a da luz. Tornando impossível haver um colapso e posterior contração do Universo.
LOR - Muito interessante e com novas e complexas informações para mim. Não sabia que já se sabe que a matéria escura permanece aumentando. Fico intrigado sobre como sabemos que está aumentando se não sabemos como medir? Imagino que por equações teóricas?
IVO BUSKO - Vejamos a entropia e o sentido da vida. Na questão do sentido da vida, a física/cosmologia pode ter algo a contribuir. Presumindo que com o termo “sentido” estejamos nos referindo a algo como intenção, razão de ser, propósito, objetivo, alvo. Neste caso, a física vai nos dizer que o sentido da vida é promover o aumento da entropia do Universo. Não que a vida seja necessária para que esse aumento ocorra; o aumento acontece com ou sem vida. O quão rápido esse aumento ocorre, é que seria facilitado pela vida.
Isso ocorre fundamentalmente porque a fonte primária da vida é a energia contida na luz solar. Ou, generalizando, na luz de qualquer estrela que seja o “Sol” de um sistema planetário (hoje sabemos que a grande maioria das estrelas é o centro de um sistema planetário). Essa energia da luz solar contém pouca entropia. Quer dizer, é uma energia de “alta qualidade”, ou seja, capaz de sustentar processos dispendiosos em termos de consumo e dissipação de energia.
Após atingir a superfície da Terra, e o final de sua jornada pela biosfera, promovendo uma infinidade de processos complexos, a energia solar é irradiada de volta para o espaço, mas agora numa forma com alta entropia.
Ou seja, nessa forma, ela não mais pode ser utilizada e se dissipa no espaço. Contribuindo em última análise para o aumento da entropia do Universo como um todo. Veja que a mesma quantidade de energia que incide na Terra, é emitida de volta para o espaço, já que a Terra está em equilíbrio térmico com o espaço à sua volta (em média). O que varia é a quantidade de entropia contida na radiação, entre a luz que incidiu na Terra vinda do Sol, e o calor (luz infravermelha) que a Terra irradiou para o espaço.
LOR - Não entendi bem. O calor não pode ser útil? Por exemplo, numa locomotiva a vapor?
IVO BUSKO - O calor é útil quando está numa forma de mais baixa entropia. Temos que lembrar que a 2ª Lei da Termodinâmica se refere apenas a sistemas fechados, isto é, onde não entre nem saia nenhuma energia do sistema. No caso da locomotiva, o sistema a ser considerado é a locomotiva, a atmosfera, e todo o resto, trem, trilhos, rodas e freios do trem, subidas e descidas da ferrovia, etc., que vão interagir trocando energia quando o trem se move. Como o sistema é fechado, se somarmos toda a energia contida nele antes do trem partir, e comparáramos com toda a energia ao final da viagem, essas duas energias terão mesmo valor. Apenas houve movimento de energia de formas com menos entropia: calor na caldeira da locomotiva, para formas com maior entropia: vapor dissipado no ar, calor nos freios e trilhos do trem, diferença de altitude entre partida e chegada (energia potencial gravitacional da Terra), etc. Esse calor no fim da viagem é o mesmo de antes da partida, mas não dá mais para usar para fazer o trem se mover.
O mesmo processo descrito antes da sua pergunta, ocorreria numa Terra hipotética idêntica à real, mas que não esteja recoberta por uma biosfera. Isto é, a energia vinda do Sol será emitida de volta para o espaço, numa forma com maior entropia, contribuindo também para o aumento da entropia do Universo, mas em menor quantidade (estou ignorando detalhes ligados à presença e tipo de atmosfera e à rotação desse planeta hipotético).
Figura 5 - A ideia é que o Sol emite uma luz com raios praticamente paralelos em direção à Terra. Já a energia que a Terra reemite para o espaço sai na forma de raios em todas as direções. E com muito mais fótons do que incidiram vindos do Sol, fótons estes com menor energia. Os dois fatores causam a entropia da radiação reemitida ser maior do que a da radiação que incidiu.
A chave da questão está no valor, na quantidade, poderíamos dizer, da entropia contida na radiação emitida para o espaço, em cada um dos casos. Fazendo modelos detalhados da Terra e sua biosfera, e das propriedades termodinâmicas desse sistema, vários pesquisadores já mostraram que a presença de uma biosfera causa a diminuição da temperatura superficial da Terra, em relação à Terra hipotética sem biosfera. Isso resulta diretamente numa maior quantidade de entropia emitida pelo planeta com biosfera.
Em resumo, a Terra com biosfera é bem mais eficiente em enviar ao Universo uma grande quantidade de entropia, do que uma Terra hipotética sem biosfera.
Um exemplo prático é o planeta Vênus, em tudo muito parecido com a Terra (incluindo a atmosfera), mas que não possui uma biosfera. Ele emite para o espaço a radiação solar que recebe, assim como a Terra, mas numa forma com menos entropia. Vênus não é tão eficiente quanto a Terra em enviar entropia ao Universo. A consequência é que a vida age como resfriador da superfície do planeta.
Se multiplicarmos o efeito da biosfera por um fator entre 1022 e 1023 (número estimado de planetas tipo Terra no Universo), e fizermos a suposição de que uma fração deles tem algo equivalente a uma biosfera, veremos que a vida pode promover uma enorme aceleração na taxa com que a entropia do Universo cresce.
O que nos leva a supor que uma fração significativa desses planetas tipo Terra tenha uma biosfera? É bem documentado o efeito de que, em sistemas físico-químicos complexos, o surgimento de estruturas localizadas e com baixa entropia acontece espontaneamente, desde que o resultado seja um maior aumento da entropia do sistema como um todo, isto é, incluindo o ambiente. Isso até deu o Prêmio Nobel de Química a Ilya Prigogine, em 1977.
Ou seja, havendo possibilidade termodinâmica, por menor que seja, de a vida aparecer em algum planeta, ela vai automaticamente aparecer. A vida não anda “na contramão” do aumento da entropia, como querem os criacionistas, mas é, ao contrário, um requisito da 2ª Lei da Termodinâmica.
Em resumo, a 2ª Lei da Termodinâmica requer que a vida exista, e a vida existe para ajudar a 2ª Lei da Termodinâmica a levar mais rapidamente o Universo para a sua morte térmica.
LOR - Uau, que sensacional! Se compreendi bem, Ivo, você está fortalecendo a hipótese 1 do Romeu, de que a vida é um capítulo da física. Pelo que está dizendo, minha primeira ilustração (mulher/vida correndo no sentido contrário da esteira rolante da entropia) reforça o sentido criacionista da vida na contramão da entropia? Então a mulher (vida) correndo iria acelerar a produção de calor, produzindo mais entropia do que se os planetas (matéria) descaíssem naturalmente pela escada rolante?
Veja amanhã a resposta do IVO.
Que trio, esse! Excelente conversa, encantadoramente ilustrada.
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