A vida como ela pode ser – Parte 4 de 5


Continuação da conversa sobre a origem da vida entre um cientista do micro e outro do macrocosmo, com palpites e ilustrações de um cartunista (e médico).

Terminamos ontem com minha pergunta - Uau, que sensacional! Se compreendi bem, Ivo, você está fortalecendo e dizendo que a hipótese 1 do Romeu, de que a vida é um capítulo da física. Pelo que está dizendo, minha primeira ilustração (mulher/vida correndo no sentido contrário da esteira rolante da entropia) reforça o sentido criacionista da vida na contramão da entropia? Então a mulher (vida) correndo iria acelerar a produção de calor, produzindo mais entropia do que se os planetas (matéria) descaíssem naturalmente pela escada rolante?

IVO BUSKO - É essa mesmo a ideia que tentei expressar no início da conversa: a vida auxiliaria na tarefa de aumentar a entropia de todo o Universo. Ela contribuiria com um aumento de entropia que se soma ao aumento que já ocorre com a dinâmica dos sistemas não-vivos. Na elaboração dos números, fiquei com dúvidas sobre a importância relativa dessa contribuição da vida. Mas mesmo que não contribua de forma muito significativa para a morte térmica do Universo, ela pelo menos não se opõe, e, por não se opor, é estimulada a acontecer sempre que houver a mais remota possibilidade de surgir.



Figura 6 – Revisão do meu conceito anterior, mostrando que a vida favorece a entropia ao produzir calor.



ROMEU GUIMARÃES - Relendo o texto do Ivo, surgiram-me algumas observações.

1) Os expoentes utilizados na contagem dos planetas similares à Terra parecem com o “número de Avogadro”, o que sugere não ser mera coincidência. Talvez mereça comentário, ou estou enganado?

2) Observo a afirmação de que a vida resfria o planeta. Não me parece intuitivo isso. Se o ser vivo consome energia e a transforma, remetendo de volta ao espaço uma parte de alta entropia, então uma parte ficou retida, o que deveria aumentar a temperatura da Terra.

3) A intuição também me indicaria que Vênus é mais quente que a Terra porque está mais próxima do Sol, recebendo 'densidade' maior de fótons (número por área). Será bom eu saber como corrigir a intuição.

4) Vale, ainda, comentar sobre as camadas da atmosfera terrestre e como elas poderiam afetar os cálculos da entropia que é devolvida ao espaço. Lembro-me de duas; para os leigos, poderiam ser chamadas de 'tetos':

· A camada de ozônio, que se formou a partir de certa idade da Terra, quando começou a fotossíntese baseada em água, em vez de H2S (gás sulfídrico), e reduz a incidência da radiação ultravioleta sobre a superfície da Terra.

· A camada de gases de efeito estufa, formada pelos chamados compostos C1 (com um átomo de carbono: gás carbônico, ácido fórmico, formaldeído, metanol, metano) que promovem retenção de radiação infravermelha (térmica).

São tetos bons até certa quantidade, para aquecer a ponto de evitar congelamento, mas ruins depois de certo limite, revertendo caracteres climáticos.

Mais questõezinhas, de biólogo ignorante em contabilidades.

1) Como seriam comparadas as contribuições para aumento da entropia do universo, dos 1022 a 1023 locais bióticos, com os buracos negros?

Imagino que a dos locais bióticos seria menor do que a contribuição dos buracos negros, mas não tenho ideia das magnitudes. Caso seja mesmo pequena a contribuição biótica, então tomar isso como 'sentido' fica menos fortalecido. Lembro de ter assistido uma palestra do Prigogine na Universidade do Texas, no período em que lá estive (1971-3), mas sei que isso nada acrescenta à qualidade da pergunta.

2) Lembro uma sentença, talvez "humorosa": 'a biologia é um capítulo da física'. Não a questiono, mas é bom lembrar os dois modelos: o arborescente da biologia (a 'regra' da biodiversidade), com futuros incertos, e o unidirecional, com futuro certo, da física, da entropia. Mas também lembro que o arborescente pode ser compatível com o da entropia, que tem como parte o aumento da diversidade de possibilidades, portanto, multidimensional.

3) Reconheço que esse meu tipo de raciocínio, dizendo e me desdizendo (LOR já notou isso), repetidamente, gera muita complexidade e, talvez, desconfiança. Noto que não consigo escapar desse padrão complexo, de tanto olhar, examinar e tentar compreender o 'mapa metabólico' (que os estudantes apelidam de 'mapa diabólico'), de tantos e inúmeros vais e vens, e loops, em todas vias. No meu modelo para a origem do metabolismo, só consegui dar os dois primeiros passos, mas logo caí na 'rede complexa' que não mais me oferece caminhos seguros.

4) Uma olhada superficial no 'modelo de sino' que desenha a evolução do universo, sugere que o surgimento da vida (na Terra) se superpõe, temporalmente, com a curvatura que indica a aceleração da expansão do universo (pelos -4 a -5 Ga). Isso combina com a proposta de seu comentário, de que a vida contribuiria fortemente para a “entropização” geral e enfraquece minha proposta em (1). Aqui, então, mais uma vez, me desdigo. Eu classificaria esta minha tendência como humilde, cheia de incertezas, e a da física ou da termodinâmica, como cheia de certeza, mas não quero dizer que seria arrogante.


IVO BUSKO - Andei olhando alguns números relacionados à entropia dos buracos negros.

Essa entropia é responsável pela maior parte da entropia total do Universo, na presente época. Portanto, Romeu, você tem razão em criticar a ideia de que a contribuição para a entropia do Universo, vinda da vida, seria significativa a ponto de fazer uma grande diferença na história térmica do Universo. Ou seja, a ideia de associar um “sentido” à vida, por causa desse papel dela, seria forte demais. Ela pode contribuir um pouquinho, e talvez seja uma contribuição apenas local. O que eu acho que seria o ponto principal é que a vida, ao favorecer o aumento geral da entropia, vai ocorrer espontaneamente e com alta probabilidade de ocorrer, sempre que for possível.

Valores de entropia que encontrei na literatura, em sua forma mais simplificada possível, são mais ou menos assim: a entropia do universo atual anda na casa dos 10102 (ou 10104 segundo trabalho recente). A entropia que a biosfera da Terra adiciona ao Universo, por ano, é da ordem de 1044. Como a biosfera existe a cerca de 109 anos (considerando apenas a ordem de grandeza), a vida na Terra teria contribuído com cerca de 1053 para a entropia do Universo. Multiplicando isso por 1022, número de “Terras” no Universo, chegamos a um valor de 1075 para a contribuição da vida à entropia atual do Universo. Isso é cerca de 1027 vezes menor do que a entropia estimada do Universo. Muito pequeno mesmo. Uma boa parte do que resta seria devido aos buracos negros. Mas isso é outro capítulo, do qual eu só sei que ainda existe muita incerteza e controvérsia sobre essa entropia dos buracos negros.

Veja que eu posso estar errado na minha interpretação desses números, ou posso estar esquecendo de considerar alguma coisa. Preciso estudar isso muito mais ainda, e tenho o sentimento de que acabarei chegando a números diferentes desses. Mas acho que a questão da contribuição da vida comparada à dos buracos negros, é mais ou menos correta: estes dominam a entropia do Universo, e, portanto, a sua história termodinâmica.

Quanto ao modelo unidirecional da física e o modelo arborescente da biologia, incluindo o mapa “diabólico”, o que tem que ser levado em conta nessas análises, nessas contas que resumi acima, é que é um modelo simplificado ao extremo. Eles pegam a biomassa inteira da Terra, a temperatura da radiação solar (5900K), a temperatura média da Terra (255K), só alguns números assim, para estimar a produção de entropia da Terra. O que achei muito bonito são os detalhes do mapa metabólico: por exemplo, o papel do ciclo da água, o papel das moléculas que lidam com a radiação UV na Terra primitiva, o papel da transpiração das plantas, etc. O assunto passa bem perto da hipótese de Gaia. Tem muito assunto interessante aí.

O número de 1022 planetas Earth-like é uma estimativa minha. Temos cerca de 1011 galáxias no Universo, cada uma com 1011 estrelas (em ordem de grandeza). Sabemos que a grande maioria das estrelas de sequência principal (que são as mais numerosas) abrigam sistemas planetários. Sabemos que esses sistemas frequentemente contêm planetas tipo Terra. Uma média de 1 por sistema estelar parece razoável. Acho que é coincidência com o número de Avogadro.

Na questão de a vida resfriar o planeta, o que acontece é que, em primeira aproximação, a energia que incide na Terra vinda do Sol é irradiada de volta em sua totalidade para o espaço. Do contrário, haveria um aumento constante da temperatura da superfície da Terra, como você mencionou. Claro, essa ideia de equilíbrio entre o que entra e o que sai é simplificada e vale para escalas de tempo grandes. Ocorrem flutuações de curto período em torno da média, mas numa primeira aproximação a gente pode ignorá-las. O que acontece é que na tal Terra hipotética que tem tudo menos vida, o ponto onde ocorre esse equilíbrio entre o que entra e o que sai corresponde a uma temperatura relativamente alta na superfície, precisamente porque ali não ocorrem os processos homeostáticos da vida para absorver e usar essa energia. Ocorre apenas aquecimento passivo da superfície e re-emissão imediata dessa energia na forma de fótons infravermelhos. A energia reemitida não foi usada para nada além do aquecimento passivo, então carrega consigo menos entropia do que no caso da Terra com biosfera.

Na Terra com biosfera, a energia que incide na superfície não é apenas reemitida imediatamente de volta para o espaço, mas usada na construção e na manutenção da biosfera. Esse uso adicional da energia que circula na biosfera gradativamente aumenta a entropia dessa energia. Quando ela finalmente é reemitida para o espaço, ela contém muito mais entropia do que no caso da Terra hipotética. Como ela precisa, porém, carregar consigo a mesma quantidade de energia que entrou vinda do Sol, ela faz isso na forma de um número maior de fótons de menor energia do que no caso da Terra hipotética. Lembrando que a entropia da radiação é tanto maior, quanto maior o número de fótons (a entropia da radiação eletromagnética é função apenas do número de fótons, e não de sua energia). Quer dizer, o fato de ela ter que carregar mais entropia consigo, a força a adotar uma temperatura de cor (espectro de Planck) menor (fótons com menor energia). Ou seja, a superfície do planeta com biosfera tem que emitir uma radiação de temperatura de cor menor, do que a superfície do mesmo planeta, porém sem biosfera. A superfície tem que ser mais fria.

Na questão de Vênus, sim, é verdade que a maior proximidade com o Sol faz com que ele receba maior energia em sua superfície, mas o efeito é pequeno. Mercúrio é até um pouco mais frio do que Vênus, mesmo estando muito mais perto do Sol. Eu comparei a Terra com Vênus porque este possui uma atmosfera densa, tal como a Terra, e a atmosfera é um dos fatores importantes da circulação de energia e entropia na biosfera.

Na questão das camadas atmosféricas, no meu raciocínio estou considerando-as como parte integral da biosfera. Ambas são produto de processos biológicos que ocorreram na Terra durante a evolução da vida, e ainda ocorrem. Quer dizer, em última análise elas são parte integral da maquinaria geo-físico-químico-biológica que temos que considerar numa análise global de entropia. Por isso é que a hipótese Gaia faz algum sentido aqui. Tem análises que incluem até a litosfera (vulcões e a tectônica de placas) nesse conceito amplo de “biosfera”.



Amanhã veremos a conclusão desta conversa!




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