A vida como ela pode ser – Parte 5 - Final

 


Finalização da conversa sobre a origem da vida entre um cientista do micro e outro do macrocosmo, com palpites e ilustrações de um cartunista (e médico), com o texto do ROMEU que serviu de primeira leitura para nossa conversa com IVO.




INTRODUÇÃO

O que é vida?

Encontram-se muitas respostas, nenhuma inteiramente satisfatória para a enorme diversidade de interesses dos leitores. Pode-se dizer isto porque a pergunta sempre retorna, sempre com alguma lacuna a ser preenchida, novas perspectivas de questões.

Tal sensação de incompletude no entendimento é recorrente porque o problema colocado se refere a um sistema complexo – o ser vivo: plástico, cambiante, adaptativo, evolutivo. . . . Tudo que se refere ao ser vivo é complexo, como esporte, música, trabalho etc. A plasticidade é o famoso futebolístico ´jogo-de-cintura´, pelo qual se driblam as adversidades, sacode-se a poeira saindo por cima. Considero este o mais nobre e característico descritor do ser vivo.

Diz-se que sistemas complexos podem ser abordados de muitas maneiras. Cada uma pode ser bem sucedida em alcançar algum entendimento, mas nenhuma delas esgota a descrição. O entendimento vai progredindo com a composição das diversas abordagens, talvez indefinidamente.

Meu jeito de abordar tais questões ´cabeludas´, é o das crianças. Sempre perguntam, após cada resposta: e antes, e antes? Por que isso, por que aquilo? E assim vamos encadeando perguntas sucessivas, cada vez mais para trás, até alcançar as origens. Ou sobre os futuros: e depois, e depois? Até chegar-se no futuro desconhecido, inalcançável, a não ser pelas ficções e imaginações.

As respostas ´para trás´ são um pouco mais fáceis: dos seres vivos, para os inanimados, como os cristais, então para a química, depois a física, até se esbarrar no Big Bang. Isso, no escrito, parece até razoável, mas se formos pensar no tempo, alcançamos os inimagináveis 13,74 x 10^9 (bilhões, Giga) de anos atrás, nas origens do universo conforme a descrição da física.

VIDA

Quando me perguntam sobre vida, a primeira parte da resposta é – como sempre, quando se fica ´enrolado´ – dizer que ´a pergunta não está bem colocada´. Mas prossigo. Entendo que vida é substantivo abstrato e, ainda mais difícil, é propriedade dinâmica, resulta ou descreve as atividades dos seres vivos. Estes sim, são objetos concretos, e parece que nossa mente está mais bem preparada para entendê-los. Pode-se até começar por nós mesmos, sem maiores elaborações, que ficam para mais adiante.

Feito isso, conceituar vida se torna mais fácil: é o conjunto total das atividades dos seres vivos. Vida é o processo vital, que os seres vivos desempenham, iniciam e percorrem. Processos, por definição, ocorrem no tempo, registram passados e imaginam futuros, que podem ou não ser realizados.

Há abordagem oposta – “processismo”, dizendo que o processo evolutivo é universal e que o processo vida, estando incluído no processo mais amplo, seria o iniciador e criador dos seres vivos. Ovos versus galinhas. Eu me sinto mais à vontade nas descrições que partem da matéria – objetivismo, para seus entornos e suas propriedades; estes compõem o processo que pode ser derivado das coisas.

Examinado o objeto, que é de demarcação mais clara, prossegue-se para os processos, sejam em direção ao passado, na criação do objeto, ou ao futuro, na composição das perspectivas que se abrem pelas atividades do objeto.

No nível individual, a descrição da vida se torna até chata e decepcionante, porque termina inexoravelmente em derrota, na morte. Por outro lado, no nível das populações coetâneas e das linhagens que estas constroem, no tempo sucessivo, o processo é, até o momento, descrito como aparentemente sem fim – não se prevê sua terminação. Não se usa o termo infinito em biologia – coisa de matemáticos e físicos. A evolução, nos termos do próprio Darwin, produz ´formas sem fim, muito bonitas´ (´endless forms, most beautiful´).

O registro dos micro fósseis apresenta a idade mais antiga de 3,5 Ga. A idade do sistema solar e da Terra é de 4,6 Ga. Estimativas químicas sugerem sinais de matéria orgânica de origem biológica há 4 Ga, de modo que se pode utilizar a idade do início do processo vital em ~3,8 Ga. Logo, a duração do processo vital é significativo: 3,8 / 4,6 da Terra, 3,8 / 13,74 do universo.

Sabendo-se que os seres vivos se reproduzem em continuidade, de célula para célula, e que todos os conhecidos compõem uma única linhagem (de composição nucleoproteica, DNA / RNA / proteína), conclui-se que o processo vital é um contínuo ininterrupto com tais – novamente, quase inimagináveis – qualidades de robustez. O termo correlato, mais da moda – resiliência – também serve para configurar o quase-paradoxo da combinação de fragilidade individual com superação pela ´força´ da evolução.

Em todo o percurso sempre restaram, para auxiliar na recomposição da biosfera, pelo menos os seres vivos basais, unicelulares primordiais, bactérias e arqueias. Pequeninos, mas poderosos. Diversificadíssimos, ocupando até recantos muito inóspitos de toda Terra, das profundezas oceânicas aos desertos secos, do muito quente ao muito frio, no interior de rochas e de vulcões, muito salino e muito ácido ou alcalino, e por aí em diante. Há desde os ambientes mais comuns, amenos como os nossos – habitados pelos mesófilos, até os extremos, dos extremófilos.

De tão pequeninos, não podem acumular ou associar muita diversidade de propriedades em cada célula. Por outro lado, a diversidade entre as células é enorme e elas podem cooperar entre si com eficiência. Até o momento, não faltou diversidade para ´começar de novo´, após cada crise.

Sobre o processo vida e sua evolução, interrompo aqui, para poder entrar no tema complementar, dos seres vivos. Somente anuncio um evento evolutivo a ser tratado oportunamente – considerado ´a maior crise de todos os tempos´, a crise do oxigênio, para fazer contraponto com a atual, crise dos gases de efeito estufa.

SENTIMENTOS

São enormes as dificuldades para se descrever suscintamente tanta diversidade: milhões de tipos e espécies. Cada descritor pode achar que sua abordagem contempla as qualidades necessárias e suficientes, assim como cada leitor pode ficar insatisfeito.

Imagino que o principal problema do leitor humano estaria relacionado com a aparentemente insuperável lacuna que se forma ao se passar da bioquímica celular para a espiritualidade humana. Nosso espírito exibe e imagina alegrias e tristezas, emoções cognitivas e estéticas, empatias – simpatias e antipatias – na interação interpessoal e social, amores convulsivos, teorias e até religiões ... que não caberiam nas moléculas, amebas e minhocas.

Talvez o artifício que a racionalidade sugere possa auxiliar: combinam-se os conceitos de pampsiquismo (pan indica generalizado, distribuído em todas entidades) e de evolução. Evoquemos o dito célebre do filósofo francês René Descartes (1596-1650): ´Penso logo existo´. Entenda-se como: converso comigo mesmo, com meu corpo, sinto-o, por isso posso estar certo de que existo.

Não posso estar seguro de que Descartes teria realmente justificado seu dito desta maneira, nem fui escarafunchar outros que o estudaram, mas parece fazer sentido. Pode-se dizer o mesmo a respeito de qualquer interação humana, seja com outros humanos ou com outras entidades. Ninguém consegue se colocar ´de verdade´ dentro da mente de outro, apesar de podermos conversar com produtividade e entendimento mútuo.

Descartes, por ser religioso, o que era condição amplamente predominante naquela época, certamente, não faria a interpretação que sugeri acima. Ele adotava o princípio do dualismo: corpo, matéria versus mente, imaterial ou transcendental, que é justamente o que o pampsiquismo tenta eliminar com a unificação dos opostos. Em vez da mente ou da consciência serem consideradas transcendentes, tornam-se manifestações dos sentimentos dos corpos: para todos, vale o ´sinto que eu existo´; para alguns, ´sinto que Deus existe´ etc.

Imagino o que o pampsiquismo deseja dizer sobre átomos e moléculas: quando eles/elas se juntam é porque se amam, como no caso do hidrogênio e oxigênio ao formarem água; apesar do químico dizer somente que eles estão compartilhando elétrons de suas camadas mais superficiais. As afinidades químicas seriam equivalentes das mentais e das afetivas. Afinal de contas, são os observadores humanos que dizem e nomeiam as coisas e suas interações. Quem somos nós para garantir que as moléculas não sentem?

Imagine o susto que leva uma molécula de ciclopropano (propano é componente principal do gás liquefeito de petróleo, gás de cozinha; o ciclopropano pode também ser usado como anestésico) quando recebe o impacto de um raio ultravioleta, que quebra uma das ligações entre os átomos de carbono e perde a forma cíclica, tornando-se linear.



Figura 7 – Diagrama do ciclopropano em sua forma cíclica e linear



Na forma cíclica, era como um triângulo: ´sem pé nem cabeça´, mas estabilizado justamente porque não os tinha; todos átomos de carbono eram equivalentes entre si, poucos radicais energéticos expostos, tudo acalmado. À quebra, adquire pontas livres, pé e cabeça, que podem às vezes serem iguais entre si, outras vezes diferentes p. ex., uma oxidada outra não, e ambas diferentes do carbono central, que fica também ´dançando´, às vezes mais afim a uma ponta outras vezes mais ligado à outra ponta. Ao perder a proteção conferida pela estrutura cíclica, a trinca de carbonos esticada fica instável, desnudada. Acordou da facilidade do enrolamento e treme o tempo todo. Moléculas nadando em sua vizinhança trombam, às vezes na cabeça, no corpo ou na cauda, um desassossego sufocante.

Ao longo do percurso evolutivo, cada entidade, do mineral ao bacteriano, do vegetal ao primata, tem seu modo próprio de sentir o mundo ao seu redor e de sentir a si mesmo. Cada um é um exemplar equivalente ao cartesiano, cada um “sente, logo existe” à sua maneira, e tal maneira pode ser de acesso difícil ao observador que tem outro modo de existir.

O humano tem um modo convulsivo de sentir, somos neurais ou ´nervosos´, as emoções estão à flor-da-pele. Pensemos nas minhocas quando saem ao descoberto da proteção subterrânea, expostas à luz cegante e ao ar dessecante. Contorcem-se e saltam em todas direções, à procura de nova loca. Imaginemos o que ela estava sentindo.

Nosso sistema neural é muito volumoso. Somente o cérebro, um quilograma e meio de neurônios e fibras (células como as outras, mas especializadas em quimio-eletricidade), fora a medula espinhal, os nervos e as terminações que alcançam todos mínimos recantos, protusões e orifícios, literalmente à flor-da-pele. Tudo é centralizado no neural, que domina e modula até os hormônios e as imunidades.

O humano, tanto quanto as outras espécies, se sente isolado delas (um pouco menos das espécies domesticadas) porque não consegue conversar com elas. Conversar é nosso modo especial de ser. É óbvio que os membros de todas outras espécies também se comunicam, pelo menos quimicamente. Sensores bacterianos promovem repulsão ou atração; esta última podendo resultar, por exemplo, na formação de ´tecidos´ organizados, chamados biofilmes. Atratores sexuais – um dos tipos de feromônios – são muito evidentes, como no cio animal.

A conversa é das principais ferramentas da interação social, ao lado das expressões visuais corporais, sobressaindo as faciais. Da linguagem falada vem a escrita, possibilitando registros mais estáveis do que a oralidade, como que ampliando nossas possibilidades de memória, e exigindo mais atenção e responsabilidade com os registros estáveis.

Vamos elaborando a listagem de nossas qualidades humanas, mas é necessário também listar problemas, que não são poucos. Cito somente três, todos relacionados entre si e com nossas interações ecológicas. Somos degradadores do ambiente, porcalhões – acumuladores de lixo, e predadores-especialistas no mais alto grau. Passemos a uma definição mais generalizada de um ser vivo, como uma célula genérica, por exemplo, uma bactéria ou uma ameba.

SER VIVO

Tento um conceito bem sucinto, mas que poderá ser estendido, por evolução, a todos seres vivos. Indico quatro caracteres essenciais. O ser vivo é:

1) um sistema de fluxo metabólico, sustentado por ambientes adequados, que:

3) se constrói e regenera com base em memórias genéticas,

4) se adapta com base em plasticidade e

5) evolui por seleção sobre populações através de reprodução diferencial dos indivíduos.

Vejamos cada uma destas etapas do conceito.

O ser vivo é um sistema de fluxo metabólico, sustentado por, e desenvolvido em ambientes adequados. Este item é, ainda, composto pelo conjunto de atividades relacionais do ser vivo. As relações incluem as com os aspectos ambientais químicos e físicos, mais as com outras entidades biológicas, seja da mesma espécie ou de outras que convivem no mesmo ecossistema.

A célula retira do ambiente seus nutrientes materiais (massas moleculares e energias, moleculares ou outras), que são transformados nas moléculas próprias de seus componentes internos (aminoácidos, nucleobases, açúcares e lipídeos), ao lado de outros que não são modificados (água, sais). O processamento metabólico gera resíduos que são expelidos para o ambiente. Este processo gera um fluxo direcional de fora para dentro e, continuando, de dentro para fora. O interior, entre os dois extremos do percurso, é configurado como extensa rede metabólica complexa, labiríntica, com múltiplas alças e ciclos, retroatividades, reprocessamentos e reciclagens, de modo que resulta aproveitamento extenso e economia de recursos, com minimização de perdas e da excreção.

Em consequência inevitável das captações e das excreções, o ambiente é modificado, ou seja, degradado. Podem ser incluídos aqui as outras atividades relacionais, como os comportamentos ativos dos animais em busca de nutrientes, incluindo até a busca de parceiros reprodutivos. Conclui-se que o caráter de degradar o ambiente é essencial ao ser vivo. Metabolismo não cria matéria nova, só transforma formas externas em internas.

O que o humano introduz de novidade é a elevada eficiência e rapidez com que o faz, especialmente pela via industrial. Assim, supera a capacidade dos sistemas naturais de recomposição e restauração, que resulta em destruição e devastação – desertificação – da própria fonte de recursos dos quais depende.

Seria comportamento da categoria suicida, equivalente à pulsão de morte, na terminologia psicanalítica? Ou seria somente cegueira, parafraseando Saramago? Egoísmo, pensando somente em si mesmos e no presente, deixando os problemas para que as gerações futuras, incluindo as de seus filhos e netos, os resolvam? Esperteza enganosa e sovinice? Sabendo que o fim dos territórios e recursos está próximo, pelo menos através de proibições legais, apressa-se em tomar posse do restinho “antes que seja tarde demais”?

O ser vivo se constrói e regenera com base em memórias genéticas. Este é o miolo ou cerne e caroço-semente do sistema. O sistema se formou por evolução natural e determina a especificidade metabólica e a identidade hereditária do sistema.

É composto por três tipos de polímeros. Polímeros são cadeias – fios – de monômeros. Estes têm uma parte constante, responsável pela repetitividade e processividade na polimerização, e uma parte variável, responsável pela informação específica que exibem.

Dois são variantes do mesmo tema – os ácidos nucleicos, DNA e RNA. As partes variáveis são as quatro nucleobases (A, G, C, mais T – em DNA ou U – em RNA). O DNA é mais estável, não se degrada com facilidade e tem a famosa estrutura em dupla-hélice completa. Uma hélice protege a outra de reatividades químicas (porque já está ocupada com seu par complementar), e cada uma serve de molde para a cópia ou replicação de seu par, de modo que a replicação de uma dupla-hélice produz duas duplas-hélices filhas.

Se não houver erros, as filhas são idênticas entre si e à mãe. Erros replicativos – mutações – ocorrem em frequência baixa – uma em cada 109 bases – mas significativa. O DNA cumpre a função de ´memória dos fios´. A sequência de bases no DNA é um registro (memória) de estados passados e acumulados nos genes. O estado presente se mantém pela replicação e se expressa quando necessário ao sistema, assim trazendo para o atual (rememorando) tais estados passados, ao produzir RNA e, deste, proteínas.

Os fios de DNA podem ser imensos, mas compactados nos (sub)microscópicos cromossomos. O RNA pouco difere do DNA, quimicamente, mas é menos estável e sintetizado ´por solicitação contextual´ do sistema, para transmitir informações do DNA para as proteínas, em pequenos pedaços, cada um para um gene ou uma função.

Proteínas são as moléculas funcionais, constituídas como cadeias de aminoácidos. Lembro somente três das grandes classes de atividades. Estruturais, para montagem dos corpos celulares (compartimentos, esqueletos etc.); receptores e transportadores (parte das membranas, para aquisição de moléculas (e sua informação) externas e secreção/excreção de outras moléculas etc.); catalizadores – enzimas – de reações de transformação química. Tais reações incluem a polimerização das próprias memórias genéticas e sua expressão, utilizando os modelos dos polímeros preexistentes.

A forma funcional das proteínas requer enovelamento espacial específico 3D dos fios primários. As enzimas – que constroem as redes metabólicas, têm formas aproximadamente globulares, mas os esqueletos são em geral filamentosos, como a seda, teias de aranhas, pelos e lãs, até formando placas córneas, como unhas, chifres e as carapaças dos besouros e tartarugas.

O ´miolo do miolo´ deste sistema genético – gerador e regenerador dos fios – é a função de síntese de proteínas. Uma maquineta chamada ribossomo trabalha como um zipper (antigamente ´fecho-éclair´) produzindo as correspondências entre, de um lado, um RNA proveniente do gene para a proteína e, do outro lado, os aminoácidos que são encadeados para compor a proteína. Não é adequado, no momento, descrever a complexidade do sistema de códigos envolvidos no processo, que é chamado de tradução (melhor seria transliteração).

A função do sistema de síntese de proteínas – o ´puxador´ de toda a rede metabólica – pode ser sumarizada, em representação ao gosto da física, como um vórtex, possível modelo para a dinâmica do cerne metabólico. É como o olho do furacão ou do torvelinho, o sumidouro ou sorvedouro no centro convexo do redemoinho, aquele fluxo sugador barulhento que se forma nas beiras do ralo da banheira. Toda a forma complexa da espiral ciclônica atmosférica que o satélite detecta do alto, o aparentemente lento movimento da espiral de nuvens, converge no olho e vai ficando cada vez mais rápido quando ele alcança o chão em catástrofe. Mas o da célula é criativo – faz proteínas. Convergem ali, após a grande ´viagem´ da análise bioquímica, a caça de presas, o metabolismo, os genes. . .

O ser vivo se adapta com base em plasticidade. A flexibilidade, maleabilidade etc., ginga e jogo-de-cintura, são os atributos funcionais próprios e característicos dos seres vivos. São mais expressivos nas proteínas e mais ainda nas redes complexas que essas montam, moderadamente nos RNA e menos no DNA.

Demonstra-se essa propriedade com a farmacologia e a imunologia. Quando há alguma função indesejada que invade nosso organismo, como bactérias patogênicas, ou que se manifesta erroneamente nele, como mutações em alguma proteína, podemos ser capazes de modificar ou anular tal função pelo uso de medicamentos. Para inibir bactérias, usamos antibióticos. Se um medicamento que tomamos produziu uma reação alérgica ou intolerância, podemos inibir a reação com antialérgicos ou induzir a tolerância através de vacinas.

Em cada um desses tratamentos, utilizamos a plasticidade das proteínas. Uma função, que é normal na bactéria, se mostra tóxica em nosso organismo mas, o antibiótico é uma droga que promove o oposto, como que enganando o organismo com o que se chama de ´reação cruzada´, inibindo a função na bactéria invasora e, em geral, não nos afetando.

As vacinas que previnem reações exageradas de nosso organismo a substâncias que veem de fora podem ser, p. ex., a mesma substância alergênica, mas aplicada em doses pequenas, toleráveis, que vão sendo introduzidas em doses gradativamente maiores, até que nosso organismo se acostume com o alérgeno e não reaja com intensidade tóxica. O alérgeno exógeno pode ser modificado por tratamentos químicos e o modificado pode ser usado como ´falso´ alérgeno, que induz reação imune a ele e sem toxicidade. A varíola humana foi eliminada pelo uso de um vírus similar, parente evolutivo dela, que infectava vacas. Quando este parente vacum foi inoculado em humanos, produziu somente uma pequena ferida localizada, mas forte imunidade contra o vírus da varíola humana.

Assim, a plasticidade farmacológica e imune demonstra, também, aspectos do processo evolutivo. São aspectos diversos da dialética natural. O que é erro em um contexto pode ser normal em outro, ´o que dá pra rir, aqui, dá pra chorar, lá´. Uma mutação no humano é erro, mas a mesma pode ser normal ou adequada a algum parente evolutivo nosso. A hemoglobina S, da anemia falciforme, faz mal quando incide sobre populações livres da malária provocada pelo Plasmodium falciparum, mas faz bem aos heterozigotos, com hemoglobinas A e S, em populações que apresentam tal parasitose. A diversidade de exemplos nesse sentido é enorme.

Essa superposição dos conceitos de adaptação e evolução pode ser resolvida, pelo menos parcialmente, dizendo que se aplica à ela o primeiro termo para a fisiologia ou ontogênese, que ocorrem durante o viver de um organismo, e são atributos de suas redes metabólicas e de regulação gênica, ao lado da plasticidade proteica. O termo evolução refere a modificações do repertório genético das populações.

O ser vivo evolui por seleção através de reprodução diferencial dos indivíduos dentro de populações. A evolução completa a descrição do processo vital.

O processo seletivo é holístico. Atua sobre o sistema vivo individual, sua rede metabólica inteira, como um todo, não sendo capaz de se referir a componentes específicos do sistema. Ainda mais, é vinculado ao contexto específico onde ocorreu. Por isso, os resultados dos eventos seletivos, sendo relacionais ao contexto, não podem ser extrapolados para outros contextos ou populações. O modo biológico de medir os efeitos da seleção, o desempenho diferencial dos indivíduos e dos grupos, é a contagem de seus descendentes dentro de uma população. A composição genética da população vai sendo alterada ao longo dos ciclos reprodutivos sucessivos.

Indica-se que, com tanta limitação contextual, ao lado da sabida variação ambiental, e sendo esta independente da orgânica, o que mais prevalece na seleção em prazo mais longo, é a manutenção da plasticidade dos biossistemas. Qualquer indício de direcionalidade deve ser cuidadosamente avaliado, à procura de fatores endógenos à biologia ou estabilidades ambientais específicas, por exemplo, a restrição de certas espécies a nichos específicos.

Não trataremos dos processos de especiação, a formação de novas espécies a partir das anteriores, a não ser somente pela indicação de que depende do estabelecimento de isolamento reprodutivo das populações, ou seja, de evoluir barreiras ao entrecruzamento.

A condição humana

O caráter que me parece representar bem, pelo menos quanto ao aspecto biológico – nosso lado animal, ainda que este seja subjacente ao aspecto cultural, é de predador máximo. Animais sempre têm que planejar a caça tanto quanto saber escapar de se tornarem presas, não só individualmente como no seu grupo doméstico.

Por conta de ter que superar diversas fragilidades corporais, em relação a seus parentes evolutivos – os grandes primatas, o humano se tornou, além de coletor de alimentos, também, caçador. Em síntese, perdas exigiram o desenvolvimento de ganhos. Pelos mesmos motivos, a caça se fez grupalmente, tanto quanto a atividade básica de proteção da porção sedentária do clã. Tal complexidade deve ter ampliado e fixado as capacidades comunicativas, para coordenação grupal, incluindo o desenvolvimento da linguagem, o domínio do fogo e o aprendizado para a construção de instrumentos.

Até o nosso hábito desleixado quanto à acumulação de lixo, exacerbando a degradação ambiental, pode ser relacionado com o hábito predatório. Restos das presas volumosas eram deixadas para trás, a satisfazerem os carniceiros, hienas e abutres.

É interessante notar como as pontas do processo convergem. A função fundamental celular de obtenção de energia, é através da ´queima´ oxidativa dos nutrientes químicos – açúcares e gorduras se tornam CO2, no metabolismo respiratório. Esta prossegue sintonizada e reforçada com a segunda queima da matéria orgânica, seja fóssil ou extante (nome sofisticado para o não-extinto), pelo fogo no ambiente aberto ou pela combustão de matéria fóssil, nos fornos e máquinas. Novamente, a dialética e a contradição: o que era bom e necessário, no contexto celular, torna-se mal, no contexto industrial devastador do presente. Pior ainda, inventamos tipos novos de lixo, que a natureza demora muito para reciclar, e prosseguimos degradando os ambientes. É evidente que saturamos a crosta e a atmosfera terrestre, em sentidos variados.

A ciência descritora e denunciadora da crise ecológica é, também, a que sugere (prescreve?) terapias. Imagino alguns futuros no mundo saturado. Daqui em diante, crescer só em qualidade. O crescimento populacional já dá sinais de arrefecimento. Há uma redução global de produtividade – questionando o valor maior, que o sistema presente tanto preza.

Que surpresas poderão nos trazer as tecnologias, a superar a urgência climática? Como ficaria o humano depois que (utopia assumida) o dinheiro for substituído por outros tipos de unidades de valores? O dinheiro deverá perder a sua aura de indutor de perversões e de corruptor-mor. Simbólico puro, sem materialidade, sugere acumulação potencial infinita – porque nunca sacia – somente por acréscimos de ´zeros à direita´ na contabilidade. Já ouvi, sobre o futuro saturado: pra que dinheiro quando não houver o que comprar?

Bactérias e arqueias fazem de tudo, algas e plantas produzem, fungos decompõem para reciclagem, animais consomem e predam. Então tornar-nos-emos bons jardineiros, plantadores e criadores, porque não somos produtores. Desenvolver agronegócios conscientes e sustentáveis. Estes não podem ser devastadores como os vigentes, só pensando em quem paga mais, no mercado. Geram, demonstrando irresponsabilidade social, a tragédia do êxodo rural: entopem as periferias das cidades de migrantes, sem preparo para os poucos empregos e presas fáceis para a marginalização.

Não convém ampliar a lista de problemas. Encerro com a provocação de zoonoses pela devastação dos habitats naturais, por conta de sua relevância para a crise atual do coronavírus. Guardo duas lembranças recentes no Brasil. A Febre Amarela Selvagem, que passou por nossas cidades há poucos anos, vitimando macacos. Ainda bem que não ´saltou´ para os humanos. Os eventos de Doença de Chagas em humanos trazidas por sucos de vegetais, Caldo de Cana e Pasta de Açaí, por contaminação dos vegetais pelos triatomíneos infectados e sua moagem junto com as fontes dos sucos e pastas. Deve-se manter vigilância cuidadosa sobre o surgimento de novos surtos, por conta do fogaréu recente, na Amazônia e no Pantanal, e da invasão da mata por garimpeiros que, com elevada probabilidade, trarão contaminantes para ambientes urbanos.

Cuidemo-nos.


Leitura sugerida: artigo na AEON de junho de 2021 



Comentário da pesquisadora Michele M Moraes

Querido Lor, 

Acompanhei com entusiasmo, aprendi bastante e fiquei pensando muito sobre alguns pontos, com fascínio pelas questões que para mim foram muito novas.

Mas demorei a responder especialmente porque fiquei pensando, mais constantemente, em uma das passagens da parte 5, quando diz "O que o humano introduz de novidade é a elevada eficiência e rapidez com que o faz, especialmente pela via industrial. Assim, supera a capacidade dos sistemas naturais de recomposição e restauração, que resulta em destruição e devastação – desertificação – da própria fonte de recursos dos quais depende". Lor, ando pensando se essa característica poderia ser atribuída ao humano, de forma generalizada e inerente ao que é humano (nesse sentido, assim como a presença de glândulas écrinas caracteriza humanos e, sempre que encontramos humanos, esperamos pela sudorese termorregulatória, a destruição e devastação da natureza seriam também inerentes ao humano?); ou se foi uma consequência de um caminho que um grupo de humanos tomou e, por conta de uma interação histórica-social-global, se tornou hegemônica. Escutei algumas falas do Aílton Krenak (VER AQUI ) e acho que comecei a entrever a paisagem pela janela que ele abre quando compartilha a visão de mundo deles. Ando reflexiva sobre quais mundos (internos e externos) são (ou não) possíveis/viáveis. 
Um grande abraço,
Michele. 

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