A vida é digital?


Uma parte do mal-estar da incivilização que estamos vivendo nos últimos anos talvez seja o resultado da simbiose que estabelecemos com nossos computadores.

Sabe-se que as novas tecnologias moldam nossa visão de mundo e temos cada vez mais incorporado a lógica digital das máquinas inteligentes ao nosso cotidiano, logo, é possível que estejamos desaprendendo a pensar fora do sistema binário dos processadores digitais, do zero ou um.

Neste modelo mental, reproduzimos nossos valores dentro da escala do tudo ou nada, do contra ou a favor, do ame-o ou deixe-o e outros sectarismos humanos, os quais tornaram cada vez mais impossível qualquer acordo, solução de compromisso intermediário e de bom senso, ou seja, a convivência democrática.

A polaridade política excessiva é uma das condições para a morte das democracias, nos lembram Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (Editora Zahar, 2017), ao analisarem como algumas experiências democráticas foram interrompidas na Alemanha, Venezuela, Chile e outras e o que está acontecendo atualmente nos Estados Unidos.

Mas a vida seria binária ou analógica? É uma questão de sim ou não, ou temos nuances, variações de intensidade, dependendo do momento? Uma criança passa a ser adolescente e este se torna um adulto em quais exatos instantes?

Por exemplo, ser contra a corrupção não me torna adepto do bolsonarismo, assim como protestar contra a destruição acelerada do meio ambiente não me torna um comunista. Defender a universidade pública não me exime de criticar os problemas internos que ela possui. Condenar os abusos salariais e éticos do judiciário não me torna defensor do fechamento do Supremo Tribunal Federal. Reconhecer a necessidade de maior presença do Estado com a melhora das forças de segurança para conter a violência (inclusive da polícia) não me torna defensor de uma ditadura civil ou militar.

Excetuando os extremos que querem destruir a democracia (ao contrariarem o princípio fundamental da igualdade de direitos entre todos os seres humanos), há uma larga faixa de posições que podem conviver como adversárias políticas e não como inimigas. Excluindo os defensores das ditaduras (de esquerda ou direita), precisamos reconhecer que todas as demais posições são legítimas dentro da democracia.

Quem garante que preservar o ambiente é a melhor solução a longo prazo para o próprio meio ambiente? Pode ser que a vida na terra, depois que colapsarmos nossa civilização pelas nossas próprias mãos, seja muito mais abundante a rica do que agora. Então, se queremos defender a civilização, precisamos começar sendo mais civilizados, respeitosos e delicados com nossos companheiros de naufrágio.

Diferentes histórias de vida nos fazem construir diversas visões de mundo. Então, defender o direito ao aborto é tão legítimo quanto ser contra a sua legalização. A democracia é o ambiente dinâmico em que estas posições podem ser discutidas em busca de soluções baseadas na razão para que possam ser aceitas por ambos os lados. Não, não é fácil, mas não temos outra alternativa pois temos que continuar vivendo na mesma sociedade.

No entanto, parece que vamos substituindo nossos neurônios progressivamente por chips e não conseguimos responder a qualquer uma destas e outras questões sociais sem sermos conduzidos para uma situação binária: a se você pensa X, então só pode ser Y. E assim, polarizados, desconstruímos a democracia e, no limite, a civilização.

Mas quem sou eu para filosofar em português, ainda mais com sotaque da minha querida Jesuânia?

De qualquer forma, garanto que o amor não é binário.

Penso numa pessoa pela qual sinto todo amor do mundo neste momento, daqui a pouco ela me é indiferente porque estou envolvido com outro assunto, depois ela se torna irritante por um determinado motivo, em seguida volto a sentir o desejo de sua companhia num intenso amor. Pura curva analógica!

Basta desligarmos o celular e tocarmos a pele de alguém para descobrirmos que há uma corrente humana alternada entre dar e receber atenção, entre reconhecermos o outro e sermos reconhecidos, entre falar e ouvir.


Entre amar e sermos amados.

PS: o cartum acima é uma adaptação de uma piada que ouvi do amigo Oswaldo Luiz, na qual um mecânico enfiado no capô do carro tenta consertar o pisca pisca e pede para seu ajudante ir lá atrás ver se está funcionando, ao que o cujo responde: funciona...parou... funciona... parou




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