SAFE-SE

O policial aproxima-se com o scanner apontado na minha direção e parece surpreso por não ver surgir na sua tela a minha identidade, ao contrário, um alerta indica que sou um indivíduo sem o antropochip, praticamente uma raridade na vida daquele profissional, apesar dele ter sido instruído sobre a existência de uns marginais que se recusam a implantar o chip de segurança sob o couro cabeludo. Diante do imprevisto, o soldado aumenta o tom de voz ao solicitar meu cartão de identificação universal, o documento anterior que fora substituído pelo minúsculo processador implantado em onze bilhões de pessoas depois que uma organização terrorista do ex-Curdistão assassinara um presidente norte-americano, morto numa banheira de hidromassagem que fora sabotada por uma mulher infiltrada entre as prostitutas contratadas e que teria sido estuprada por ele quando adolescente. O policial leva a mão ao coldre ao ouvir que não estou de posse do cartão universal, que devo ter esquecido em alguma parte, já que raramente saio de casa e o faço agora justamente porque tive uma dor no peito, meu medicamento para dilatar as coronárias acabou e o sistema de saúde online instruiu-me a procurar pessoalmente o atendimento no hospital mais próximo. O policial pede-me para sair do veículo com as mãos à sua vista e para seguir até o posto de vigilância instalado numa van adaptada, onde o oficial ouve o relato do subalterno, enquanto comprova a partir de meu nome digitado em seu painel de controle que, de fato, ele está diante de um unchiped. Como é possível alguém viver sem o chip de segurança? Sou professor aposentado, tento explicar, e quando o chip se tornou obrigatório havia a opção de recusá-lo, permitida apenas para os idosos com nível universitário, como eu. E por que o senhor não quis receber algo em benefício de sua própria segurança? Porque escolhi a minha liberdade..., mas sem querer apressá-lo, senhor oficial, a dor no peito está voltando e não estou me sentindo bem... Veja o problema que causou a si mesmo: não posso deixá-lo passar sem o chip ou sem o cartão universal e o sistema não me envia uma ambulância sem o chip ou sem o cartão. Entende como o senhor mesmo prejudicou a sua segurança pessoal? Ainda prefiro a liberdade, insisto em voz baixa. O oficial fez uma cara de desprezo: Liberdade para quê? Não entendo vocês, liberais. Como se a gente vivesse no meio do mato, sem ninguém por perto. Aí sim, dava para ser livre até o primeiro leão te comer. Mas então juntamos um bando de gente esperta que encarou os leões e todas as pragas da natureza e viramos senhores do planeta. Agora, com quase doze bilhões de pessoas se encostando umas nas outras, cada uma precisando comer, beber e cagar, que liberdade a gente tem? Porque se não houver ordem no bando, ninguém come, ninguém bebe e todo mundo se mata. Meu peito está doendo, o senhor me desculpe, mas preciso... O senhor está mal, estou vendo, mas o máximo que posso fazer é designar uma viatura para levá-lo ao hospital. Por favor, faça isso..., concordo rapidamente enquanto percebo o suor frio escorrer pelas minhas costas. Mas só posso acionar uma viatura se os policiais o transportarem classificado como detido por razões de segurança. Preso? Sei, é desagradável, mas o sistema não me permite outra forma de acesso. A dor parece rasgar meu peito, sinto náusea e falta de ar ao me levantar em direção ao veículo militar, onde sou acomodado no compartimento gradeado, o cinto é afivelado e colocam-me um par de algemas. São procedimentos de rotina, informa um dos soldados, o senhor compreende, para sua segurança. 


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