Os novos canibais

Passei esta noite atormentado por duas notícias trágicas que me chegaram casualmente pelo celular: a descoberta de outra quadrilha internacional de traficantes de órgãos e o desaparecimento da filha de dez anos do amigo de um amigo meu. Fui para a cama sem coragem para comentar estes fatos com minha família, na esperança de dormir e superar a tristeza pela existência de tais crimes hediondos, na verdade vários crimes conectados entre si pela cadeia cruel da desigualdade social.

De um lado, pessoas ricas o suficiente para comprarem órgãos de pessoas pobres, seja “voluntariamente”, como acontece com pessoas pressionadas por seu extremo grau de pobreza que aceitam vender um rim, por exemplo, ou à força, como é óbvio no caso do caminhão encontrado pela polícia mexicana com corpos de crianças que foram usadas como fonte deste comércio macabro. Como é possível tamanho grau de violência e crueldade? Como é possível que seres humanos se apropriem de partes dos corpos de outras pessoas, as quais foram mortas em seu benefício, e que depois continuem vivendo com os órgãos roubados sem quaisquer remorsos? Ainda que tudo isto seja realizado por meio de tecnologia sofisticada, este crime continua sendo uma monstruosidade que torna seus praticantes uma espécie de tecnocanibais.

Além dos ricos compradores, as quadrilhas são formadas pela rede de intermediários traficantes e sequestradores, em busca de seu quinhão de riqueza no mundo globalizado da ambição financeira. 

No entanto, na outra ponta deste crime contra a humanidade, porque destrói nossa esperança de humanização dos nossos comportamentos violentos herdados da vida natural, temos o lado mais estarrecedor para mim que são os médicos capazes de transformar a nossa profissão em instrumento de assassinato perverso e sistemático, movidos pela ganância do enriquecimento interminável nesta sociedade em que somente o dinheiro tem valor. É preciso ter cursado uma faculdade de medicina, ter treinamento adequado e mínimas qualidades técnicas cirúrgicas para realizar o procedimento de retirada dos órgãos e sua implantação noutra pessoa de forma eficiente. Que tipo de pessoa são estes médicos que depois de ter recebido ensinamentos éticos, treinamento em empatia e solidariedade e a oportunidade de cursar uma faculdade de medicina (e com isso ter um trabalho digno e bem remunerado pelo resto da vida) se transformam em frios criminosos movidos pela ambição desmesurada?

Há muitos anos, quando os transplantes estavam apenas começando, uma amiga médica especialista neste assunto respondeu ao comentário de alguém sobre os primeiros boatos de que haveria tráfico de órgãos com a seguinte frase: “Mas, roubar órgãos para colocar em quem? É um procedimento muito complexo. É preciso ter uma equipe médica especializada para fazer isto! ”. Pois então, minha amiga, durante muitos anos me consolei com esta sua hipótese de que a ética médica seria o bastante para evitar este crime hediondo e tudo não passaria de uma lenda urbana, mas parece que existem as tais equipes médicas, infelizmente, inclusive oficialmente, como na China, onde comercializam os órgãos dos condenados à pena de morte.

Estarreço-me ao constatar, mais uma vez, que a desigualdade social desperta os monstros que existem em nós. É claro que se não houvesse a desigualdade econômica ainda haveria crimes entre os seres humanos, mas numa escala muito menor e restrita a casos especiais, por doenças mentais, por exemplo.

Incapaz de dormir, angustiado, mais uma vez tive vergonha de pertencer a este mundo onde tamanhas atrocidades são cometidas por pessoas semelhantes a mim. Sentia meu coração latejando na cabeça e alguns batimentos pareciam falhar para em seguida acontecerem outros mais fortes, que ampliavam minha ansiedade e a insônia. Tive vontade de que meu coração parasse definitivamente, mas parasse tão profundamente que sequer pudesse ser usado num transplante qualquer.

Mas ele não parou, o dia amanheceu e minha única alternativa é continuar vivo, em busca de notícias sobre a menina desaparecida torcendo para que tenha sido encontrada bem, e à procura de qualquer forma, ainda que mínima, de contribuir para acabar com a desigualdade entre nós.



PS: Alguns minutos depois de concluir este texto, consegui saber que a menina foi encontrada e está bem. Mas a desigualdade continua.

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