O tempo é nossa matéria prima fundamental

Há duas semanas participei de um seminário intitulado a “Práticas médicas: o encontro do ontem e do hoje com o amanhã” promovido pela CASU (Caixa de Assistência à Saúde da Universidade), durante o qual médicos e professores falaram sobre as dificuldades enfrentadas pela prática da medicina nos tempos atuais.

Minha participação no evento se deu na forma da apresentação de diversos cartuns (a maioria dos quais já publicados nos últimos 40 anos) relacionados à Medicina. Comecei pelo cartum acima, de 2011, uma paródia de uma pintura famosa “The Doctor”, uma obra de arte especialmente apreciada entre os médicos de várias gerações (abaixo).

Meu cartum toca na questão da complexidade do tempo, os tempos próprios de cada pessoa que são marcados pelas suas memórias e emoções e os tempos diferentes nas relações entre as pessoas, como entre o médico e o paciente.

A maneira como medimos e percebemos o tempo varia conforme as épocas (por exemplo, o relógio com minutos e segundos e o horário mundial sincronizado são invenções da Revolução Industrial, porque era necessário sincronizar os horários de trens na Inglaterra). 
Atualmente, o tempo da nossa atenção (especialmente nas telas eletrônicas) se tornou a principal matéria prima disputada pelo mercado, afetando nossas relações humanas, imprimindo um sentimento de urgência cheio de ansiedade em tudo o que fazemos. 
Nesta industrialização da vida, tudo se torna rapidamente obsoleto e/ou descartável, uma vez que todas as atividades humanas são reduzidas à condição de mercadorias para serem consumidas. Nesta linha de desmontagem acelerada, a nossa identidade também é corroída pela objetificação e "falta de tempo", tornando os projetos de vida e os compromissos afetivos impensáveis no longo prazo.

Dias depois do simpósio, recebi um e-mail do professor, médico e escritor Luiz Otávio Savassi Rocha, pessoa fundamental na minha formação profissional e de tantos outros médicos, com alguns comentários muito interessantes sobre esta pintura. Com a autorização do Savassi, transcrevo suas observações porque elas ampliam nosso olhar sobre o tema.

“Ao rever seu primeiro slide, lembrei-me de outra montagem (ver abaixo) do quadro "The Doctor", de Samuel Luke Fildes, inspirada num texto do brilhante internista Prof. Abraham Verghese, da Stanford University, autor, entre outros memoráveis textos, do artigo "Culture shock: patient as icon, icon as patient", publicado, em 2008, no periódico The New England Journal of Medicine. Etíope de ascendência indiana, Dr. Verghese cunhou o neologismo "iPatient" para se referir à situação do paciente nos dias de hoje, convertido em um objeto virtual, um banco de dados ou um boneco estragado. De acordo com a versão mais aceita, Samuel Luke Fildes teria concebido o famoso quadro em homenagem ao médico (Dr. Murray), que atendera seu filho mais velho, Phillip, falecido, ainda criança, no dia de Natal, vítima de tuberculose. Impressionado com o carinho, o desvelo e a bondade do Dr. Murray, o artista houve por bem homenageá-lo, a despeito de ele não ter conseguido salvar seu filho (!), o que, para mim, constitui o máximo, em se tratando da prática da Medicina. ”


Caro Savassi, mais uma vez obrigado pelas suas reflexões críticas, criativas e bem-humoradas.


E, já que gerenciar o tempo é uma necessidade humana, desejo a todos que o tempo adiante, que denominamos de 2017, seja menos apressado, e que tenhamos mais tempo para a solidariedade, para a amizade e a para construção de um mundo mais justo para todos.

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