Lítio

Acordei com o leve sinal vibratório do Body Personal Fitness (BPF) sobre meu pulso indicando a hora e meus sinais vitais, todos em ordem, exceto por pequena insuficiência dos níveis de lítio na circulação, o que poderia ser corrigido durante o café da manhã com a ingestão do iogurte A-bipo já disponível no refrigerador. Uma breve sensação de tédio perpassou os momentos nos quais o ponto eletrônico com minha própria voz enumerava na orelha esquerda as principais atividades daquele dia, tranquilizando-me ao dizer que cada um dos itens da agenda seria relembrado alguns minutos antes da sua realização para permitir os ajustes adequados para cada tarefa. A primeira delas era autorizar que a Central de Comportamentos enviasse duas mensagens de agradecimento, uma geral, às pessoas que me cumprimentaram eletronicamente pelos meus 105 anos completados ontem, e outra especial e mais personalizada, a ser enviada a uma dúzia de parentes e amigos que vieram até o meeting point da empresa para um café e um pedaço de bolo oferecido pelo gerente de relacionamentos institucionais, afinal, sou uma espécie de exemplo, pois fui um dos primeiros executivos a optar pelo plano de Permanência Ativa, ainda na década de 20, quando poucas pessoas aderiam ao sistema de longevidade saudável, o grande negócio bilionário que se tornou o carro chefe de nossa companhia de seguros Saf Ever. É verdade que poucos podiam pagar pela nova tecnologia de manutenção das funções vitais por meio de sinalizadores bioquímicos permanentes inseridos em chips em nosso organismo pelo BPF, o pequeno equipamento desenvolvido pela companhia e semelhante aos antigos relógios digitais, que ativa continuamente os genes necessários para manter o organismo estável e sem qualquer sinal de envelhecimento. Na verdade, apesar da alta mensalidade que pagamos pelas atualizações diárias do BPF, ele não é tão perfeito assim, pois hoje, por exemplo, posso ver algumas pequenas rugas nos cantos dos olhos, algo que seguramente não estava aqui nos meus quarenta anos de idade, quando assinei o contrato com a Saf Ever. Outras falhas do produto podem acontecer, inclusive de formas mais graves, como o caso da minha mulher, para quem havíamos comprado um modelo da mesma qualidade que o meu, apenas adaptado para o corpo feminino, é claro, mas depois de uns trinta anos ela começou a reclamar que estava perdendo o sabor dos alimentos, a sensibilidade nas mãos, esquecendo coisas importantes e incapaz de emoções em situações padrão mesmo quando o BPF aumentava a liberação de dopamina. Os técnicos da Saf Ever tentaram de tudo, mas acabaram confessando que as mulheres, de fato, apresentam mais incompatibilidades com o BPF, talvez porque o monitor genético tenha sido desenvolvido inicialmente apenas para os homens. Apesar dos esforços da equipe de biotecnologia, em poucas semanas Débora envelheceu todos os anos acumulados desde seus belos trinta anos, o que me obrigou a leva-la ao centro hospitalar para desativamento global quando ela já não me reconhecia e nem aos nossos filhos e netos. Nem sei porque me lembrei de Débora, não costumo pensar nisso, pois meu BPF sinaliza quando surgem pensamentos relacionados com minha esposa, indicando que são sentimentos pessimistas que podem piorar meu estado de humor, minha saúde e meu desempenho. Talvez sejam os baixos níveis de lítio que acabo de lembrar agora quando já estou no subway que não restaurei com o iogurte indicado. Consulto o BPF e ele recomenda que eu compre um pote de A-bipo na próxima estação, mas quando desço na Porto Velho II fico perdido na plataforma, pois jamais parei por ali, um local sabidamente frequentado por refugiados, repleto de pichações clandestinas com palavras antigas como morte a isso, viva aquilo, juntos não sei o quê. Enquanto o subway se afasta percebo que não há nenhum selfservice de suplementos para BPF e decido retomar o próximo metrô em dois minutos, mas um casal de jovens refugiados claramente me observa do outro lado dos trilhos. Eles falam algo entre si e desconfio que o rapaz virá em minha direção, meu BPF sinaliza níveis de noradrenalina excessivos, o ponto eletrônico recomenda que eu devo mudar minha atitude o mais rapidamente possível, mas não consigo me mover, solicito ao BPF orientação sobre aquelas pessoas e minha própria voz diz que elas vêm de muitas partes do mundo fugindo de guerras e calamidades ambientais, mas nada sei de fato sobre elas, talvez a voz de um porteiro na empresa, uma faxineira entrando em minha sala, mas não há nenhum registro pessoal, nunca devo ter trocado uma palavra ou olhado diretamente em seus olhos. O que mais me impressiona neles é que a maioria não possui planos de Permanência Ativa, eles envelhecem e morrem como antigamente. O jovem retira algo do bolso e salta nos trilhos e com dois outros saltos está do meu lado na plataforma oferecendo algo numa língua que não compreendo e que se confunde com o ruído do novo trem estacionando. Digo não em algumas línguas que conheço e penetro no vagão assim que a porta se abre e praticamente corro até um lugar distante da entrada, de onde vejo o jovem ficar para trás na plataforma segurando algo indefinido na mão, enquanto meu BPF anuncia que meus níveis de lítio estão perigosamente baixos e que eu posso começar a apresentar visões depressivas da realidade.

Comentários

  1. Adorável viagem de Volta ao Futuro......rs
    Imaginação incansável e sem limites, só tem mesmo o "Tio" Lor!!!
    Beijo da sua fã!

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