O militante

Tive a impressão de conhecer aquele rosto que me aguardava com ar apreensivo na sala de espera e que antecipou suas desculpas assim que entrou em meu consultório: sei que não é sua especialidade, mas eu precisava falar com um médico mais ou menos da minha idade, alguém que tenha vivido as últimas épocas. Depois de sentado, acrescentou que me conhecera de vista numa determinada situação política que não localizei na memória imediata e disse que nas últimas cinco décadas havia acompanhado de perto a maioria dos acontecimentos no país, tendo participado da resistência à ditadura militar, do movimento pelas eleições diretas, das passeatas pelo impeachment do primeiro presidente eleito... pelo voto! - Fez uma pausa com expressão de desânimo. Enfim, - continuou, tenho sido uma pessoa bem informada, vejo os telejornais, sou atento, leio jornais regularmente, alguns livros de opinião e até andei fazendo umas incursões na filosofia básica. Talvez percebendo minha expectativa para que ele falasse sobre a questão principal, o porquê vinha ao meu consultório, ele pareceu deixar de lado uma parte do histórico que vinha fazendo, suspirou fundo e desabafou: meu problema começou com a atual crise na Síria. Não pude evitar minha pergunta: como assim? Ele continuou: Sou assinante de um jornal, o Le Monde Diplomatique, e ao acabar de ler uma reportagem sobre a guerra na Síria percebi que não conseguia saber qual o lado que eu considerava correto, qual deles eu deveria apoiar. Reli tudo, fiz anotações laterais, sublinhei nomes e posições, rabisquei com canetas a cores o infográfico com as diversas correntes em luta, sírios pró e sírios contra o presidente, iraquianos, norte-americanos, russos, turcos, curdos, guerrilheiros do Estado Islâmico, além de intromissões e apoios, entre outros, dos iranianos, israelenses e sauditas, resultando nos milhões de refugiados das mais diversas etnias, todos eles sob bombardeio terrível, incluindo os médicos sem fronteira, de quem sou financiador e recebo relatórios mensais. Nada adiantou, continuei sem saber para qual lado eu deveria torcer e fui tomado por uma angústia profunda, porque isso nunca me ocorrera antes, eu sempre conseguia identificar quem estava do lado das correntes progressistas e quem defendia a manutenção do mundo como ele é, ou seja, eu sempre soube quem era de esquerda e quem era de direita. Tranquilizei-me pensando que a situação na Síria era muito complicada mesmo, um especialista na TV já o dissera, e aquilo tudo estava muito longe de mim. Mas nestas últimas semanas voltei a experimentar a mesma falta de direção, uma espécie de vertigem política, ao tentar acompanhar os protestos que estão acontecendo em tantas cidades brasileiras. É claro que sou contra a corrupção, contra o roubo do dinheiro público, mas isto não me faz ir à rua em defesa das operações policiais organizadas por um juiz que não tem sido isento diante de todos os políticos acusados de receberem propinas de empreiteiras, tentando culpar alguns e protegendo outros, o que não quer dizer que eu apoie qualquer líder acusado de crimes duplos ou tríplex, ou um partido que tenha assumido o poder com discursos de esquerda e por mais populares que fossem realizaram alianças com partidos corruptos e acabaram se tornando populistas, o que não significa que algumas medidas econômicas realizadas nos últimos governos não tenham sido eficazes para retirar parte da população da miséria e injetar ânimo nas pessoas, mas deixando a reforma política de lado eles acabaram por beneficiar o discurso dos pastores evangélicos que assumiram o congresso e compraram rádios e televisões por todo o país e derrubaram sua presidenta, o que não implica em eu ser a favor dos católicos mesmo quando liderados por um papa com posições novas até na questão do aborto, que aliás foi objeto de decisão do supremo tribunal de justiça, o que não quer dizer que acho correta toda postura do supremo porque em algumas delas a gente fica babando de satisfação em outras de ódio, como na substituição de uma presidenta por um pau mandado (uma pinguela de passagem, como disse outro ex-presidente), indicou-me o fim do parêntese com as mãos), um pusilânime interino que nem faz questão de jogar para a torcida porque joga apenas para os patrocinadores, mas não vou para as ruas pedindo a sua saída do governo porque não sei quem poderia entrar no seu lugar... Permaneci em silêncio perplexo diante da rapidez e ansiedade com que o homem narrara suas imbricadas questões. Ele respirou fundo num esforço para se acalmar e retomou sua queixa num tom mais baixo. Tenho tentado encontrar uma posição pessoal que seja coerente no meio de todas estas dúvidas, mas não consigo, é como se estivesse nas minhas mãos decidir quem deveria ser melhor presidente dos Estados Unidos, ou se a Inglaterra deveria ou não sair do mercado comum, ou se os nacionalistas têm mais razão do que os ecologistas.... Enfim, quem está do lado certo na guerra da Síria, entende? Me deu um branco e, para completar, doutor, minha mãe apresentou sinais de demência aos cinquenta e poucos. O senhor acha que eu posso estar começando com Alzheimer?

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