Bem-vindos à uberlândia

Decidi sair da rodovia na primeira oportunidade quando minha cólica abdominal se transformou numa urgência por um vaso sanitário. Desliguei o rádio, onde o noticiário comentava a última decisão do governo de flexibilizar as relações entre patrões e empregados, legalizando a partir de agora qualquer tipo de regime de trabalho, para prestar toda atenção numa placa que indicasse um posto ou restaurante e na primeira delas enveredei por uma pequena estrada sem prestar muita atenção no nome da cidade que ela indicava, zonzo que estava pelo mal-estar físico que já incluía calafrios. 
No primeiro posto de combustíveis desci do carro em correria, passei pela mulher no caixa da lanchonete que tentou falar algo comigo e tentei inutilmente abrir a porta do banheiro masculino, onde havia uma placa solicitando que introduzisse meu cartão de crédito. Depois da senha digitada a porta se abriu e eu permaneci dentro do ambiente de azulejos brancos e peças de aço inoxidável por longos minutos de agonia. Parcialmente recomposto, caminhei o mais linearmente que permitia minha vertigem de volta para meu carro, mas não o encontrei. Perplexo, mantive meu olhar por alguns instantes para o local onde o estacionara como se esta insistência pudesse devolver o automóvel de uma outra dimensão em que se encontrasse. Indaguei do homem que trocava o pneu de uma caminhonete se ele teria visto alguém levando um carro assim e assim, mas ele balançou a cabeça e sugeriu-me que chamasse a polícia. 
Percebi que meu celular não tinha sinal e voltei à lanchonete, onde a moça cobrou-me antecipadamente pela chamada telefônica à polícia e pela vaga que utilizara no pátio, mesmo com o meu protesto de que meu carro fora justamente roubado dentro do estacionamento. Depois de alguns minutos apareceu uma viatura com dois homens fardados e assim que comecei a explicar a eles sobre o carro eles me interromperam e solicitaram meu cartão de crédito para iniciar as investigações, explicando que as atividades policiais eram terceirizadas naquela cidade e que haveria uma taxa para cada procedimento de investigação que tivessem que realizar. Novamente atônito com aquelas cobranças, mas incapaz de reagir a elas porque meu estado gastrointestinal parecia se agravar, perguntei aos policiais se havia algum atendimento médico nas proximidades e eles me apresentaram a taxa de transportes de usuários a destinos hospitalares, com a qual tive que concordar e que passou a fazer parte da fatura completa da investigação sobre o desparecimento do meu carro. 
Deixado na porta de uma clínica que indicava atendimentos médicos variados, recebi dos homens fardados um número do protocolo da ocorrência com o qual eu poderia acompanhar pela internet o andamento do roubo de meu veículo. Na recepção da clínica, uma atendente uniformizada de verde quase branco, solicitou-me o cartão de crédito ou do plano privado de saúde para me fornecer uma senha que corresponderia a uma sala onde seria atendido pelo médico, que me ordenou que colocasse o dedo indicador no local apropriado para a biometria, o que permitiria a ele recuperar todos os meus dados clínicos, o que obviamente não funcionou, porque não sou cadastrado no sistema nacional privado de saúde. Sem saber o que fazer diante desta situação, o médico resmungou algo como “cada uma que me acontece nestes plantões que sou obrigado a aceitar”, e apertou uma tecla de seu computador sobre a mesa que indicou os procedimentos habituais em casos como o meu sem registros clínicos prévios, os quais ele foi seguindo passo a passo: perguntou-me qual era meu problema, há quanto tempo eu estava doente, se estava usando algum medicamento e se havia feito algum exame laboratorial. Digitadas as minhas respostas, a impressora soltou uma receita que o médico me entregou com cara de adeus e desviou seu olhar para a porta como se antecipasse minha saída da sala. 
Orientado pela recepcionista, caminhei até uma farmácia, onde paguei pelos comprimidos receitados e perguntei ao atendente onde poderia pegar um táxi e ele pareceu surpreso ao responder que “aqui não existem táxis há muito tempo, chame um uber”, sugeriu. Paguei, claro, pela chamada telefônica que ele realizou para o motorista, que chegou em poucos minutos e esclareceu que poderia me levar apenas até a divisão do município, pois a partir dali seria outra empresa de carros que controlava as corridas e, se eu quisesse, ele poderia solicitar outro carro da outra regional, por uma pequena taxa, é claro. Concordei com as condições e depois de percorrermos algumas centenas de metros surgiu a cancela ao lado de uma guarita de onde saiu uma pessoa (reconheci nela o uniforme da empresa policial), que nos mandou parar e aproximou-se com uma prancheta nas mãos. 
Boa tarde, quanto tempo o senhor permaneceu na cidade? Disse que talvez cerca de duas horas, o guarda escreveu algo numa tabela e apresentou-me a máquina de cartão de crédito com o valor a ser pago. O que é isso? O senhor utilizou nossos serviços de purificação e manutenção do ar, consumiu níveis extras de oxigênio e lançou gás carbônico na atmosfera. Minha expressão de espanto deve ter sido percebida pelo motorista, que advertiu: se não pagar, não podemos sair da cidade. Digitei mais uma vez minha senha e seguimos adiante até o limite do município, onde outro carro já me esperava. De dentro dele, voltei meu olhar para o grande outdoor às nossas costas: Bem-vindos à uberlândia. Na vinda, eu deveria ter prestado atenção à crase e à falta de maiúscula no nome da cidade.

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