Tribos de areia

Fábula Iano-Momesca [1]




















Era uma pequena praia, no litoral brasileiro e próxima a Peracanga, mas muito especial. Lá, os grãos de areia adquiriram características inacreditáveis há algum tempo. Como todos sabem, os grãos de areia têm um impulso natural para subir uns sobre os outros, porque aqueles que ficam acima têm menos chance de serem arrastados pelas ondas do mar. Os mais habilidosos em trepar sobre os outros, portanto, viviam mais tempo, o que lhe permitia deixar mais descendentes quando se fragmentam ao final de sua vida útil de cerca de 30 ou quarenta minutos. 

Além disso, como também é do conhecimento geral, quanto mais alta a posição do grão de areia, mais ele atrai as partículas de sílica em suspensão no vapor da água do mar, o que aumenta o seu tamanho, tornando-os mais fortes e resistentes, prolongando assim a sua vida. O tamanho do grão também determina a sua capacidade de atrair outros grãos menores, inclusive os rosados, que ao se aproximarem dos maiores, geralmente azulados, produzem pequenos grãozinhos que ficam aderidos ao grupo, formando pequenos aglomerados de areia.




Esta tendência para subir uns sobre os outros acabava formando pequenos montes de duzentos a trezentos aglomerados, cujo formato visto de longe parecia a metade de um coco emborcada sobre a praia. Disputar um lugar no topo do monte de areia tornou-se assim uma característica muito forte nestes grãos de areia, transformando-se numa competição cada vez mais acirrada de uns contra os outros. Depois de gerações e gerações, nenhum grão sabe mais o porquê deve lutar desesperadamente para subir, apenas que tem que ser assim.

Com o tempo, os montes de areia foram ficando maiores, formando aglomerados que lembravam uma pirâmide ou um castelo. De vez em quando, uma onda maior derrubava tudo e os grãos de areia que restavam sobre a praia iniciavam sua eterna luta entre si e novos montes se formavam. Outras vezes, o vento forte arrastava alguns e mantinha os montes reduzidos a pequenas ondulações na praia.

No entanto, durante um período de maré baixa especialmente prolongado, o mar se distanciou dos montes de areia e eles apresentaram um desenvolvimento excepcional, quando então foi formada uma grande estrutura composta de milhões de grãos de areia e seus aglomerados, atingindo alguns metros de altura. O grande monte, com ondulações diversas culminava num topo onde se encontravam os maiores grãos, que eram mais azulados e viviam o dobro do tempo dos outros, especialmente daqueles que viviam na parte interna do monte. Ali, na escuridão das horas, os grãos ignoram a existência do mar, do vento, ou mesmo do próprio monte que eles formavam, e apenas passam os dias sustentando os de cima e tentando desesperadamente subir um milímetro a mais em relação aos seus colegas de infortúnio.






Cobrindo toda a superfície do monte, há uma camada de grãos de areia que vai do quase branco até o azulado mais escuro dos grãos que estavam no ponto mais alto. Os grãos desta camada externa, como todos os demais, tentam subir o mais alto possível, mas para isso usam como apoio uma folha seca, um galho de árvore, uma concha marinha, o que acaba por gerar estruturas complexas, que são disputadas ferozmente, desencadeando guerras terríveis envolvendo milhões de grãos, seguidas de curtos períodos de trégua, quando a convivência melhora bastante e todos tentam seguir as regras de ascensão estabelecidas nos acordos de paz.

Quanto maior o monte, maior a peso sobre os grãos mais abaixo, o que levou a diversas rebeliões dos grãos que vivem na escuridão, que acabaram derrotadas pela força da elite dos azulados e seus aliados na camada externa. Além de continuarem por debaixo, os grãos brancos do miolo perderam a esperança de conquistarem alguma posição ao sol.

Atualmente, esta situação continua tensa e tem causado diversas alterações no comportamento dos grãos de areia. Alguns, percebendo que a luta é inútil, que jamais chegarão ao topo, desistem e se deixam levar pela força da gravidade e o vento se encarrega de submergi-los no mar. Outros, mesmo tendo atingido no ponto mais alto do grande monte de areia, continuam obsessivamente tentando subir mais, desconhecendo que sua angústia tem origem num impulso insaciável, condicionado por gerações e gerações anteriores. Finalmente, em meio a tantas diferenças de tamanhos e cores, há muita violência, especialmente dos grãos azuis contra os demais, gerando insegurança para todos.

Muito já se estudou e escreveu sobre estes grãos especiais. Famosos silicólogos e grantropólogos disputam entre si quem sabe mais sobre aquelas tribos de areia, construindo hipóteses científicas que são apresentadas em conferências acadêmicas, as quais geralmente terminam em mais polêmica e discordâncias agressivas. Entre várias, uma teoria resiste às críticas há mais de cem anos, propondo que haveria uma luta permanente entre o instinto de sobrevivência dos grãos e as forças da entropia, ou seja, uma espécie de pulsão de morte para se deixar levar para as profundezas das águas. Esta corrente de pensamento acredita, inclusive, que cada grão de areia possui três níveis de consciência, exatamente como as camadas de areia, e que esta consciência poderá evoluir para uma compreensão futura das areias de todas as praias brasileiras.

Apesar de toda a complexidade das formas do monte de areia atual, a maioria dos grãos não sabe que a região de Peracanga pode ser atingida nos próximos anos pela elevação do nível do mar, causada pelo aquecimento global.



Fotos de Nina Alexandrina, 2015, praia de Castelhanos, Espírito Santo.


[1] Tipo de histórias contadas nos Festivais de Mentira que acontecem entre algumas tribos da Amazônia. Mentir bem é considerado por elas como sinal de inteligência social.


Pós-escrito

Pesquisas mais recentes acabaram por revelar que a estrutura das tribos é um pouco mais complexa, resultando em formação de clãs, ou gens ou totens, unidos entre si por um intrincado sistema de nomes e parentescos. Aparentemente, o individualismo exacerbado dos grãos resultaria na extinção de todos, o que favoreceu um acordo instável de cooperação entre grupos, baseado na herança sanguínea dos grãos rosa, por um lado, e simultaneamente no domínio pela força física dos grãos azuis. Acredita-se que deste sistema de obediência a grãos fundadores derivaram-se algumas religiões primitivas com seus xamãs, que acumularam patrimônio (e poder) depois que algumas espécies de alga domesticadas passaram a viver em simbiose com os grãos de areia. Desta acumulação de riqueza teria surgido um estado natural de classe entre os grãos de areia, chamado de Leviatã pelo filósofo Thomas Hobbes, um acordo social entre os grãos, uma espécie de mal menor, pois perder a liberdade seria mais vantajoso do que ser tragado pelas ondas do mar. Depois, outro Thomas, o Piketty, mostrou que a diferença de status entre os grãos de areia no topo e aquelas na base da pirâmide do sistema de classes nunca parou de aumentar, mas, atualmente, acontece de forma exponencial porque todos os grãos de areia estão convencidos de que qualquer alternativa está destinada a morrer na praia.





Comentários

  1. Ficou muito bonito. Quem julga e quem ganha o festival de mentiras? Talvez ninguém ganhe ou perca, todos se divertem. A ciência custou a inventar o Prêmio IgNóbil. Precisamos descobrir outros.

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