Impressões de Cuba – A última noite em Havana






















Desenho do Adán, excelente cartunista do Juventud Rebeld.


Uma mudança nos planos do grupo brasileiro fez com que retornássemos de Santa Clara no domingo e esta casualidade resultou numa sequência de acontecimentos que deram o derradeiro colorido emocional à nossa viagem a Cuba.

Como eu e Thalma não tínhamos reserva em hotéis para a última noite em Havana, todos lotados nos últimos doze meses com o aumento do turismo, Martirena e sua esposa Niury gentilmente conseguiram para nós uma hospedagem na casa de Ilia, no bairro Vedado em Havana, antigo reduto da aristocracia antes da revolução de Fidel Castro, ao preço de 30 pesos turista, cerca de 120 reais.

Chegamos à casa de Ilia à noite, completamente encharcados pela forte chuva que nos atingiu depois de deixarmos o ônibus da comitiva e demoramos a conseguir um taxi. Fomos recebidos com muita gentileza por Ilia e uma espanhola que também estava ali hospedada, assim como havia um casal de alemães noutro quarto, que viemos a conhecer na manhã seguinte.

Foi um grande alívio tomar um banho quente para retirar o suor da viagem de quatro horas num ônibus de fabricação russa, cujo motorista (aparentemente o comandante incontestável do veículo) desconsiderou todos os pedidos de diversas pessoas da comitiva para que ele abaixasse o volume do som, obrigando-nos a ouvir as piores músicas que já pude ser forçado a escutar, mesmo com os protetores antirruído enfiado nas orelhas. As nacionalidades das músicas variavam, mas como reclamou o cartunista Zardoyas, “merda é a mesma em qualquer parte do mundo”.

Na manhã seguinte, tomamos o melhor café da manhã de todos nossos dias em Cuba, no qual os pedaços de fruta eram suficientes, o café forte o bastante e o pão saboroso, e saímos para conhecer o bairro a pé e o monumento em homenagem a José Martí. O bairro Vedado, originalmente casas da burguesia cubana, tem aspecto melhor do que a Habana Vieja, pois o centro histórico parece uma tentativa de reconstrução depois de bombardeios sistemáticos numa guerra crônica.









Duas vistas do centro histórico de Havana e uma do bairro Vedado.

Passamos pelo imenso cemitério Colón e nos dirigimos ao monumento a José Martí, de cuja parte central dianteira Fidel Castro fazia seus longos discursos para centenas de milhares de pessoas, tendo ao fundo as imagens de Che Guevara e Camilo Cienfuegos. O clima de culto àquelas personalidades é inescapável e formatado no estilo arquitetônico influenciado pela arte realista russa do início do século vinte, o que não me parece o melhor caminho para o socialismo democrático, que deveria atribuir a todos a condução da história e não a alguns heróis iluminados. Novamente em minha mente o conflito fundamental: pátria ou socialismo?



Monumento a José Martí: endeusamento dos heróis e culto à personalidade.

Aquelas últimas horas em Havana consolidaram em mim certa tristeza que vinha se acumulando diante do sofrimento que percebia naquela população maltratada pelo bloqueio econômico norte-americano, o genocídio mais longo da história, como está escrito num dos outdoors oficiais. 


Contribuiu para este sentimento saber que Ilia, a dona da casa na qual nos hospedamos, vem a ser a filha de um médico, Doutor Orlando, que estava naquele momento internado num hospital por problemas crônicos de saúde. Na sala da casa há uma fotografia emoldurada com Orlando e Che Guevara e ao observar a foto fui informado pela Ilia que Orlando, seu pai, era quem cuidava da saúde de Che enquanto ele viveu em Cuba.



Foto do Dr. Orlando, de pé e de óculos escuros, atrás de Che Guevara.

O fato de que aquele velho médico, provavelmente bem relacionado entre a elite dirigente cubana, seja obrigado a alugar quartos para manter um padrão de vida minimamente decente, faz-me supor que embora haja pobreza geral, não há privilégios, nem mesmo para aqueles revolucionários de primeira hora, como Dr. Orlando e o fotógrafo Perfecto Romero. Ou seja, pareceu-me que todos estão sofrendo juntos as restrições econômicas, ao contrário do que sugeriu aquele cubano na porta do Museu da Revolução.

Por outro lado, este sofrimento geral leva inevitavelmente à pergunta: valeu a pena a revolução cubana? Teria o sonho se tornado um pesadelo? Sei que não há alternativa histórica para ser comparada, por exemplo com a eventual inexistência do bloqueio econômico norte-americano, o que permitiria o socialismo supostamente desabrochar em felicidades na ilha, para sabermos se poderia ter sido diferente.

Com o fim tão esperado do bloqueio norte-americano, contando com uma população altamente instruída formalmente, quanta novas medicinas sem fronteira, quantos novos engenheiros criativos reduzindo a poluição, quantos Buena Vista Social Clubes poderão surgir para ajudar o mundo a ser melhor?

Enquanto nosso avião decolava do aeroporto José Martí, olhei pela última vez aquelas terras tropicais, tão parecidas com muitas partes do nosso Brasil e perguntei mais uma vez se, apesar de toda a resistência dos cubanos, o capitalismo venceria mais esta batalha.

Qualquer que seja o olhar ideológico de quem puder visitar Cuba, as lições históricas são desproporcionalmente grandes para o tamanho da ilha e sua altiva população. 

Há muito por acontecer e a história humana ainda não acabou. Assim penso eu, aqui em Minas Gerais.



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