Comentários do CID Velloso sobre Cuba

Transcrevo abaixo, com sua autorização, os comentários do amigo Cid Velloso, médico e Professor Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, tendo sido seu Diretor e Reitor da Universidade, e é uma pessoa que possui vasta experiência em viagens, inclusive duas a Cuba em missões técnicas sobre programas de saúde (tanto em governos do PSDB quanto do PT). Cid tem a qualidade da franqueza e das opiniões firmes, mas nunca abre mão da delicadeza e do espírito democrático. Obrigado Cid. Sinto-me honrado com sua leitura dos meus textos.

LOR,

Seu relato de viagem, com impressões e análises políticas é excelente, valorizado pelos seus ótimos cartuns e de seus colegas cartunistas encontrados na viagem a Cuba.

Vou comentar alguns itens do relatório, mas resumo no seguinte: a sua impressão final global da questão e da história de Cuba é muito parecida com a minha: sempre fui um entusiasta da revolução cubana que foi vitoriosa em 1959, com aquelas figuras heroicas e bonitas dos comandantes (especialmente Fidel e Che Guevara, que se tornaram ícones mundiais), com apoio popular e rural amplo e comprometido; ao longo do tempo, não diminuiu minha fascinação pelos políticos e por Cuba, mas fiquei cada vez mais entristecido com o insucesso do socialismo real, no contexto capitalista global (e tendo os EE.UU. muito próximo de Cuba).

A triste conclusão que chego é que a concepção política do socialismo é perfeita, mas a execução criou em Cuba (como também em outros países que tentaram o socialismo: União Soviética, leste da Ásia, Nicarágua, Coréia do Norte, China, etc.) um regime ditatorial: não há partidos políticos atuantes oficiais, não há liberdade de imprensa e de opinião, não há liberdade de ir e vir dos habitantes, não há rodízio de governantes, há os preconceitos contra homossexuais, há presos políticos, etc.

O sistema de governo conseguiu muitos resultados positivos para a população: sistema de saúde funcionando bem, com universalização e integração do atendimento (você sabe que a mortalidade infantil lá é menor do que nos EE.UU?), pesquisas médicas bem avançadas, educação de boa qualidade em todos níveis, nivelação socioeconômica bastante avançada, entre outros aspectos. É óbvio que é um país pobre, mas há um nível digno de vida: os médicos ganham pouco mas, como toda a população, têm sistema de saúde e de educação, têm racionamento de produtos alimentares, mas não passam fome; não se vê (não sei atualmente, mas quando visitei Cuba era assim) mendigos pedindo esmolas, moradores de rua, crianças perdidas nas ruas, "descamisados", etc.; há contrabandistas (de rum, charutos, produtos contra o colesterol pesquisado em Cuba), prostitutas nas ruas (como em todo o mundo) e as casas estão em mal estado de conservação, mas todos têm onde morar - é um país pobre, com poucos itens de produção/comercialização (açúcar, charutos, rum, medicina, turismo).

Aí entra a reflexão que devemos fazer (reflito muito e não consigo concluir) sobre o desenvolvimento civilizatório de um país sob o capitalismo e a dificuldade do país socialista de ter o mesmo desenvolvimento. O capitalismo desenvolve a indústria, o comércio, a pesquisa, os postos de emprego, moderniza-se, mas isso cria a exclusão social, como temos no Brasil e mesmo nos EE.UU. O capital domina a política, os governantes, as universidades, as pesquisas, mesmo a cultura e cria uma ditadura do capital. Cuba é um país pobre, mas também tem poucos recursos naturais (a não ser a beleza das cidades e das praias) e não consegue crescer economicamente - não sei a solução (será que há?). É lógico que a pobreza cubana tem também outros fatores, como o embargo norte-americano, refletindo com outros países subservientes aos EE.UU. a queda do regime soviético que subsidiava o regime cubano, mas não é apenas isso; há fatores internos da política cubana responsáveis pelo fato.

Visitei Cuba duas vezes: em 1995, coordenei a implantação do Programa de Saúde da Família em Minas Gerais, convidado pelo Secretário de Estado da Saúde, Rafael Guerra Pinto Coelho e fui oficialmente a Cuba conhecer o Programa de lá, que era um modelo excelente - trouxe muitas ideias boas para o Programa em Minas. Depois fui em 2004, nomeado pelo Ministério da Saúde e junto com um professor da Universidade Estadual de Londrina, para conhecer e avaliar as escolas de medicina de Cuba - havia já a ideia de trazer médicos cubanos (assim foi avaliado na época, pois os médicos cubanos eram formandos com predominante foco na atenção básica, o que falta no Brasil e em quase todos países), pois os médicos brasileiros recusavam ou não tinham formação para essa atenção (foi o germe do Mais Médicos).

Nas duas visitas, fiquei fascinado com o país: bonitas cidades, embora casas malconservadas, povo hospitaleiro, alegre, musical e sem denotar sofrimento ou revolta com o regime socialista (apesar dos aspectos ditatoriais que citei acima), com admiração pelos líderes revolucionários (conversava com motoristas de taxi, funcionários do hotel, comerciantes, pessoal da área da saúde e mesmo com a população, na visita que fazíamos ao PSF).

Lógico que havia oposição e muitos intelectuais escreveram bons livros denunciando a ditadura (até um livro que comprei para ler de um cubano: Padura, que se chama "O homem que gostava de cachorros"). Um aspecto que fica claro é a falta das benesses do capitalismo que fica a 150 km. da ilha, em Miami: os lindos shoppings centers, o comércio de consumo (aí entra o trocadilho do cartum: Wal Mart x Wal Marx), a boa vida capitalista - obviamente um sonho que também milhões de brasileiros não acessam, apesar de existirem no Brasil para as classes A e B (até a C tem avançado nesse aspecto, atualmente). Quando ouço a detestável frase "por que você não vai morar em Cuba?" Afirmo com segurança: as classes A e B brasileiras (cerca de 8% da população) teriam sua vida piorada em Cuba, mas a massa da população das outras classes teria uma melhora da qualidade de vida: saúde, educação, moradia, alimentação (racionada, mas existente).

Alguns comentários sobre seu relato:

· Impressionante a quantidade de carros antigos funcionando bem; creio que em Cuba temos os melhores mecânicos de carro do mundo, para conseguirem manter esses carros.

· A "ditadura" cubana atual é indefensável, mas o regime anterior de Batista era muito pior para a população como um todo, além do domínio norte-americano, que usava como quintal de prostituição, jogatina, máfia, além de perda de identidade e de dignidade da população.

· Ótima a foto dos jurados da Exposição, com você e a Thalma.

· O cartum do Linares é ótimo e reflete o que ocorreu no filme TITANIC, com o Leonardo di Caprio e a Beth Winslet.

· A frase "sonhos não envelhecem" não é do Milton Nascimento, mas de seu letrista Márcio Borges, que inclusive escreveu um livro com essa frase (ótimo livro, seu você não leu, posso emprestar).

· Discordo que os governos petistas (apesar de toda lama que eles chafurdaram, igualando-se aos outros partidos, pois a camarilha política brasileira nunca esteve tão ruim e corrupta, em geral, de todos partidos - talvez exceção do seu PSOL) aumentaram a concentração de renda: a Bolsa Família e o reajuste do salário mínimo desde o governo Lula (o S.M. era 80 dólares no governo FHC e hoje é cerca de 250 dólares) diminuíram acentuadamente a desigualdade econômica, tanto que as classes C e D compram muito mais, viajam mais, divertem mais, os bares estão mais cheios, etc.

· Você fez cartuns criticando o Programa Mais Médicos, mas sempre fui a favor, pois levou médicos a rincões (e bairros distantes em grandes cidades) por todo o país, trazendo médicos ideais para o tipo de atendimento, que é a atenção primária - como você sabe, uma boa atenção primária resolve totalmente 85% dos problemas de saúde da população, sem especialistas e com poucos ou nenhum exame complementar. Como os brasileiros não quiseram participar na época do lançamento (houve chamada pelo Ministério da Saúde, mas não apareceu quase ninguém), chamaram os cubanos, que são formados e têm experiência no assunto. Lógico que o Programa tem muitos problemas: falta de uma lei que cria a carreira de médico (como têm os advogados), o salário irrisório que o Governo cubano paga aos médicos (embora melhor do que ganham em Cuba), pois o Governo fica com a maior parte. O problema da revalidação dos diplomas é controvertido: o Ministério da Saúde na época argumentou um fato bem claro: o Programa funciona com um contrato de prazo limitado para os médicos cubanos trabalharem apenas naquelas localidades, sob supervisão de médicos brasileiros; se revalidarem o diploma, poderão logo mudar para as grandes cidades, deixar o Programa e até competir com os brasileiros; hoje eles estão proibidos de fazer isso.

· A questão da falta de cintos de segurança nos carros não é exclusiva de Cuba. Viajo muito e vi que muitos países da Europa e Ásia não dão a mínima bola para o cinto, embora existe nos carros e alguns usam. O Brasil pelo menos nisso está mais civilizado.

· Gostei de sua nova mania de empilhar pedras: a foto ficou muito boa.

LOR: desculpe o longo texto, mas é também um desabafo pelas opiniões equivocadas que tenho ouvido muito no Brasil, pela posição terrível da classe média (e também médica) brasileira, pela publicidade permanente e mundial do capitalismo e suas "maravilhas". Obviamente, tudo que eu disse é polêmico e sujeito a contradições.

Parabéns pelo seu ótimo texto e pelos cartuns.

Um abraço para você a para a Thalma.

Cid

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