Impressões de Cuba 7 – O desconforto de um “classe média”






































Sou brasileiro, branco, homem, formado em medicina e professor universitário aposentado, portanto sou pertencente à classe média, no sentido econômico e ideológico do termo. Meu olhar sobre Cuba, ainda que submetido a uma tentativa de controle consciente em decorrência de minhas posições políticas, certamente é perpassado pelos valores da classe à qual pertenço, ou seja, o conforto cotidiano, os valores da educação formal, as expectativas civilizatórias ocidentais e a liberdade de opinião e a democracia eleitoral. Consequentemente, nos sete dias que passei em Cuba percebi algumas coisas que me incomodaram e para as quais busco um significado real além do colorido ideológico de minhas retinas.

A primeira delas é que é um país submetido a uma guerra econômica, como já comentei, gerando pobreza, escassez de recursos essenciais e clima de restrição democrática de opinião. No entanto, apesar da pobreza geral, há uma altivez no olhar dos cubanos, como se dissessem: Sou pobre, mas isso nada tem a ver com minha dignidade.

Mas há contradições. Andando pelas ruas de Havana, Santa Clara e Remédios, notei grande quantidade de grades (novas e antigas) por toda parte, casas residenciais e outros imóveis. Aliás, num dos restaurantes que fomos com a comitiva do Salão de Melaíto, havia um portão de ferro que literalmente era trancado para impedir que alguém entrasse sem a permissão de um dos garçons quando não havia vagas nas mesas. Em todos os imóveis há um excesso de gradeamento, enquanto várias vezes ouvimos dos cubanos que não há violência em Cuba, que podemos andar tranquilos à noite, etc. Perguntei a mais de um deles se não havia alguma contradição entre as grades e a suposta ausência de violência, pelo menos quanto a roubos. Não obtive resposta, aliás, pareceram-me surpresos com minha observação.

Por outro lado, de fato, o primeiro carro de polícia que vi em Havana foi somente depois de 24 horas de estadia na cidade. Indaguei sobre isso para um dos ciclistas que nos transportam em triciclos adaptados e ele respondeu ironicamente que não há policiais nas ruas pois em Cuba todos são policiais. Deu uma gargalhada de deboche e corrigiu: - Todos, não, apenas duas em cada três pessoas. Riu novamente.

O trânsito chama a atenção pelo desprezo pelos pedestres, que são advertidos agressivamente por buzinas estridentes para que saiam da frente. O predomínio dos carros fumacentos (carcaças norte-americanas com motores russos a diesel) sobre os direitos dos pedestres é tão evidente que fotografei uma placa de trânsito, que supostamente seria para advertir os motoristas sobre a presença de escolares, na qual as crianças estão correndo e cuja legenda mais adequada seria “Cuidado, crianças, FUJAM! ”.




Além disso, os cintos de segurança são supostamente exigidos apenas nos carros mais novos, assim como os capacetes de segurança, que parecem mais capacetes de operários da construção civil do que aqueles apropriados para minimizar os traumas cranianos. Muitas pessoas são transportadas sem quaisquer medidas de segurança (ver foto abaixo) e Cuba apresenta os acidentes de trânsito como a quinta causa de morte.



Antes de nos unirmos à comitiva do Salão de Melaíto, quando então passamos a conviver diretamente com os demais cartunistas, Thalma e eu passamos três dias em Havana como turistas comuns.

Quando éramos identificados como brasileiros a primeira coisa que nos diziam é o quanto gostavam das novelas brasileiras. O gosto popular pelas novelas da Rede Globo... a presença frequente por toda parte de músicas do tipo “Ai se eu te pego...” todo mundo de olho nos celulares em qualquer lugar onde houvesse um sinal de internet... as crianças brincando com “transformers” e armas de brinquedo fabricadas em Miami... o assédio de um cubano me presenteando com uma nota de três pesos, para depois me tomar 3 pesos turista... Fiquei olhando para aquela nota e pensei, acabrunhado no meu gosto de classe média, se o Che Guevara teria feito a revolução se soubesse que ia dar nisso tudo...






Entretanto, gostei (um gostar muito acima da média de todos os museus que conheço em algumas partes do mundo) do museu de arte cubana, especialmente as obras reunidas a partir da revolução, pois elas têm um caráter muito próximo dos cartuns, com ideias criticamente filosóficas, explícitas e bem construídas esteticamente. Depois, vêm as obras contemporâneas, nas quais o desencanto generalizado já se tornou a expressão dos tempos de nulidades utópicas encontrados em qualquer museu do mundo.


Na saída do Museu da Revolução, um cubano comentou comigo que aquele prédio fora residência de Batista e ao mesmo tempo sede do governo e que ali, naquela época, quem tinha dinheiro podia usufruir de farras e privilégios, inclusive utilizando-se de prostitutas de luxo. Acreditando que estava diante de um legítimo defensor da igualdade entre os homens, eu disse: No capitalismo é assim: poucos têm muito e muitos não têm nada. Para minha surpresa, o homem respondeu: - No socialismo também. E se afastou rapidamente. Foi a única vez que ouvi a palavra socialismo em Cuba, fora dos poucos outdoors oficiais e do conteúdo do próprio Museu da Revolução, o qual parece inverter um pouco a lógica histórica, descrevendo um evento excepcional (a revolução cubana) como se fora destino inevitável e resultante da força de vontade dos heróis nela envolvidos.

Por falar em socialismos, na chegada em Havana, compartilhamos nossa van até o hotel com um cambojano em férias, depois que ele reuniu dinheiro durante o ano trabalhando para uma fábrica de camisetas para a Nike e Disney. Ele estava eufórico com a viagem, uma a mais no seu roteiro anual de visitar todo o mundo. Cuba era apenas mais um na lista do Caribe. Eu não conseguia esquecer que aquela pessoa alegre vinha de um país onde o ditador assassino Pol Pot exterminara mais de um milhão de pessoas, há menos de 50 anos, durante seu regime intitulado pelos genocidas como sendo comunista.

Ao lado do hotel onde Ernest Hemingway tomava seus porres, perdi três ilusões: o hotel não merece a fama, há camelôs assediando os turistas como em qualquer parte do mundo e encontrei um jovem bêbado, desnutrido, fedendo a fezes e urina, abandonado no chão feito um cão, tremendo, em abstinência de álcool. As pessoas passavam por ele como se não existisse e jamais pensei que veria este comportamento num país “socialista”.

E apesar do socialismo, pelas ruas das cidades que visitamos vi várias mulheres de branco em iniciações religiosas como as baianas brasileiras, vi sinais de rituais afro-americanos pelas praias, esquinas e encruzilhadas e vi igrejas católicas lotadas de fieis com padres distribuindo água benta exatamente como nos mais conservadores redutos católicos de Ouro Preto. Não tive escolha, e em homenagem ao meu irmão Ernesto, fiz um trocadilho: Religião é um mal deusnecessário!



Comentários

Mais visitadas

A última aula do Professor Enio

Querido Ziraldo

Último post