Facebook: não quero participar do caleidoscópio.



Dias atrás, Thalma repetiu-me a pergunta que meu amigo cartunista Duke já fizera: por que não publico meus desenhos no Facebook, uma vez que eles teriam maior visibilidade, atingindo mais pessoas do que no formato de postagens em blogs? De imediato, respondi a ambos que nada teria racionalmente contra o Facebook, mas não era atraído pelo convívio social da maneira como ele acontece naquela rede social, apesar de ter nela participado por uns tempos.

No entanto, a dúvida da Thalma e do Duke motivou-me a compreender melhor meu distanciamento do Facebook.

A primeira questão é: por que publicar meus cartuns? A criação dos desenhos atende a desejos internos pouco controlados por mim, mas, em geral, eles surgem como impulso criativo involuntário em resposta às mais diversas ansiedades causadas pelo mundo em suas múltiplas dimensões: uma violência contra uma mulher ou uma criança, um atentado jihadista, uma mentira política, uma experiência pessoal diante da morte, do envelhecimento ou do amor. Sei que preciso desenhar sobre aquilo que me aflige, construindo um novo olhar sobre aquele acontecimento, o que geralmente produz algum grau de alívio na angústia da impotência diante de um mundo no qual sei que sou insignificante.

No entanto, o desenhar apenas não completa o processo ansiolítico, pois é preciso torná-lo público: somente quando outra pessoa vê o cartum é que se fecha o ciclo e descanso em paz. Assim, é necessário que eu saiba que alguém viu o desenho para que o ato de publicar, na forma impressa ou virtual, traga alívio parcial à ansiedade criativa. A satisfação plena somente acontece quando recebo alguma indicação de que o desenho foi realmente visto por alguém.

Ao criar o desenho, percebo que o faço como se me dirigisse a um leitor imaginário, o qual parece reunir em si algumas pessoas que imagino que compreenderiam e apreciariam aquele trabalho, aquele traço, aquela ideia ou crítica social ou política. Enquanto realizo o cartum, penso difusa e desordenadamente em pessoas como a Thalma, minhas filhas e genros, alguns irmãos, amigos da universidade, amigos cartunistas e meu pai e minha mãe, é claro, alteregos primordiais. Certos cartuns são dirigidos a pessoas específicas e com elas dialogo, mas, na maioria das vezes, estas gentes queridas formam meu super leitor imaginário e espero que uma ou todas elas venham a por seus olhos sobre o trabalho criado.

Acontece que nunca me senti à vontade para depois de criar o desenho o levar até uma destas pessoas e dizer: veja isto. Já o fiz, e desgosto em definitivo, pois me parece que estou coagindo a pessoa a fazer algo que não seria sua escolha naquele momento. Descobri que a solução para este dilema é que me basta saber que o desenho estará disponível para estas pessoas, caso elas queiram, a qualquer instante vê-lo, mesmo sem que eu saiba que o viram. Não preciso de sua apreciação, seu comentário ou julgamento: basta saber que o desenho está ao alcance de seus olhos e pensamentos.

No blog é possível saber o número de pessoas que viram cada cartum depois de postado, embora eu não tenha conhecimento dos nomes das pessoas que acessam e nem aquelas que me seguem por e-mail. Com este recurso eletrônico, sei que, no momento, diariamente cerca de 30 pessoas acessam meu blog como cartunista. Alguns desenhos têm mais acessos, outro menos e já soube de desenhos que foram reproduzidos por outras pessoas nas redes sociais, inclusive no Facebook, mas esta informação não aparece no meu contador de acessos.

O importante é que estas pessoas decidiram acessar o blog voluntariamente, ou seja, elas não recebem a informação passivamente, como se estivessem sentadas diante de um programa de televisão.

Como o blog é gratuito e meus desenhos podem ser reproduzidos livremente, desde que não sejam alterados, está claro que não tenho qualquer objetivo financeiro com estes cartuns, pois a esta altura da minha vida o salário de professor universitário aposentado permite viver a vida que desejo. Portanto, neste sentido, não preciso aumentar a minha audiência. Aliás, já experimentei o sentimento de publicar charges editoriais em dias alternados para 250 mil pessoas durante quinze anos no Diário Popular de São Paulo, para onde enviava meus desenhos enquanto residia em Belo Horizonte, portanto não sabia quem eram os meus leitores. A diferença para o blog é que no Diário Popular, diante da tiragem do jornal, eu tinha mais receio de ser politicamente irresponsável, ou expressar algo do que pudesse depois me arrepender (como aconteceu algumas vezes).

Por outro lado, escrevo outro blog diariamente, desta vez como médico, levando informações e respondendo perguntas para pessoas e seus familiares com doenças genéticas chamadas de neurofibromatoses (www.lormedico.blogspot.com.br). Ao contrário do blog como cartunista, quanto mais gente acessar o DR LOR Diariamente (atualmente cerca de 100 pessoas por dia o fazem), mais famílias poderiam ser beneficiadas, pois, sendo um grupo de doenças raras, a maior demanda atual é por informação científica sobre seu diagnóstico, prognóstico e tratamentos. Além disso, quanto mais gente puder ser beneficiada, mais eu me sentiria útil, o que aumentaria a justificativa para minha existência, aquela mesma, insignificante, mas neste caso, pelo menos, solidária. No entanto, tenho a impressão de que mesmo este blog de informações médicas não se beneficiaria do ambiente caleidoscópico do Facebook.

Caleidoscópio, como todos sabem, é um instrumento óptico formado por espelhos, os quais a cada momento apresentam combinações visuais variadas e interessantes. Ambiente caleidoscópico parece definir o clima do Facebook, onde as coisas se sucedem, mudando continuamente, ainda que, depois de um número de recombinações, as repetições forçosamente venham a ocorrer.

Esta instabilidade e mutação permanente do que se vê a cada instante não me parecem apropriadas seja para os meus cartuns ou para as informações médicas. Para o humor, o ambiente criado ao redor do cartum é fundamental para o alcance da sua compreensão: na rede social, qualquer cartum se torna obrigatoriamente mais uma piada, com evidente intenção de ser engraçada, no sentido cômico e não no sentido do humor. Ser cômico é algo que tento ser com netos e netas, mas não corresponde ao meu desejo ao fazer um cartum. Da mesma forma, para o sofrimento das pessoas com neurofibromatoses, a transitoriedade e leviandade das postagens no Facebook seria um desrespeito acrescido à sua dor.

Ainda que haja informações interessantes no Facebook, o caleidoscópio está repleto de gatinhos, gatinhas, piadas e assuntos bizarros e o seu componente aleatório (ao sabor dos interesses momentâneos da rede social) nos conduz ao estado de quase passividade (o “quase” fica por conta do nosso direito de clicar ou não em curtir ou não curtir), como se estivéssemos diante de uma revista eletrônica dominical, do tipo Faustão ou Fantástico: os editores (no caso o aleatório dos assuntos) impõem a pauta e nós a engolimos.

Por fim, mas talvez devesse estar em primeiro lugar, o caráter autorreferente do Facebook acaba gerando certa miopia binocular a respeito das próprias ideias: deleto (em português era “apago”) todos aqueles que me desagradam e curto (adiciono) aqueles que se parecem comigo. Ao final, eu me encontro comigo mesmo e com meus milhões de selfs, postados por mim e pelas outras versões digitais de myself.

Em resumo, participar do Facebook é como entrar naquelas festas onde todos falam e poucos escutam e no dia seguinte ninguém se lembra de nada.

Lor 30 11 15

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