Vovó, você é de esquerda?


Para as amigas Facundas

 

“Antes de discordar,

tento acordar.”

Gu Ê Krig

 

 

- Vovó, o que é uma pessoa de esquerda?

- De onde veio sua dúvida?

- O pai da minha colega falou que nossa professora de história só pode ser uma pessoa de esquerda.

- O que você imagina que ele quis dizer com isso?

- Não sei... A professora é uma pessoa legal..., mas pareceu um xingamento.

- Pode ser que o pai de sua colega não aprove algumas ideias da sua professora.

- Como assim?

- As pessoas veem o mundo de formas diferentes...

- Eu sei, tipo torcida de futebol...

- Hum... é diferente... No futebol, torcer para um time não afeta a vidas das outras pessoas..., mas certos assuntos afetam… imagine que estamos num ônibus… procurando um restaurante e então chegamos a um cruzamento... não temos um mapa do caminho… umas pessoas dizem que devemos ir pela direita, outras pela esquerda e outras acham que é para seguir reto... o resultado da escolha interessa a todas as pessoas porque todas terão que seguir o caminho que vencer a discussão.

- E como vão escolher sem saber o caminho?

- Cada pessoa vai sugerir a direção baseada em seus próprios conhecimentos e experiências do passado... como a história de vida de cada pessoa é única, os caminhos sugeridos podem ser diferentes...

- É... se escolherem errado, vão passar fome!

- O complicado é que pode não haver um único caminho certo... por exemplo, mesmo que a estrada escolhida leve ao restaurante, pode haver a queda de uma ponte e não chegarmos ao restaurante... o futuro vai surgindo conforme o ônibus vai andando.

- Não entendi!

- Então, imagine outra situação... Uma cidade com aumento da criminalidade tem que decidir se gasta o dinheiro dos impostos contratando mais professores ou mais policiais... As pessoas que acham que mais educação diminui a pobreza e a criminalidade vão escolher mais professores... já as pessoas que acham que mais educação não reduz a pobreza e nem a criminalidade vão escolher mais policiais.

- E por que não gastar metade do dinheiro com escola e metade com policiais?

- Sim, essa seria a opinião de pessoas que preferem o meio termo, ou ir reto no caso do ônibus.

- E qual é a proposta certa?

- Como no caso do ônibus, ainda não há uma proposta “certa” na hora da discussão, pois o verdadeiro resultado de qualquer decisão somente será conhecido no futuro... por exemplo, um tempo depois de contratados mais professores pode não ocorrer a diminuição da criminalidade porque existiriam outras causas para a criminalidade, como um novo aumento da pobreza... ou depois de contratados mais policiais pode não ocorrer a diminuição da criminalidade também por outras causas, como uma nova organização criminosa que teria chegado à cidade...

- Nossa! É... o futuro ninguém advinha, então nenhuma proposta tem a garantia que vai dar certo... Interessante!

- Por isso as discussões políticas são difíceis.

- É uma discussão sobre qual seria o melhor futuro...

- Sim, até porque muitas vezes faltam instrumentos de medida da realidade que ambos os lados aceitem... por exemplo, um estudo que responda se a criminalidade tem relação com a falta de educação ou com falta de policiais nos últimos anos...

- Mas, voltando ao assunto, por que o pai da minha colega acha que a professora de história é uma pessoa “de esquerda”?

- Talvez porque sua colega tenha falado ao pai algumas ideias da professora que a maioria das pessoas entende que são ideias mais de esquerda...

- Tipo?

- Por exemplo, na situação do gasto do dinheiro com escolas ou policiais, sabemos que as pessoas mais “de esquerda” preferem mais professores e as pessoas mais “de direita” preferem mais policiais... Na verdade, a preferência das pessoas varia num espectro... como num arco íris.

- E por que chamam essas ideias de direita e esquerda?

- É uma herança da Revolução Francesa, quando os políticos que defendiam os ricos e aristocratas se sentavam à direita nos debates e os políticos que defendiam os trabalhadores e pobres se sentavam à esquerda… daí ficou esse nome.

- Manero! E até hoje é assim?

- Hoje, os políticos se sentam misturados, mas as ideias mais à direita geralmente andam coladas em outras ideias mais à direita e as ideias mais à esquerda também andam juntas...

- E por que ideias vão andar juntas? Não entendo...

- Porque as pessoas desenvolvem diversos valores ao longo da vida e por isso cada uma percebe o mundo de forma diferente… como se os valores fossem lentes...

- Que tipo de valores?

- Todas as pessoas possuem um conjunto de valores dentro de um espectro... nenhum destes valores é melhor ou pior... do mesmo jeito que  uma cor não é “melhor” do que outra...

- Tipo o arco íris de novo?

- Isso. Aquelas pessoas que se tornam mais à direita do espectro, geralmente... presta atenção...geralmente dão mais valor à lei e à ordem, à hierarquia, à lealdade, às tradições, à moral tradicional e aos costumes e se sentem mais ameaçadas por mudanças... elas acham que o mundo no passado era melhor do que no presente e por isso preferem que as coisas continuem como elas estão...mesmo que o mundo atual tenha problemas... então, as pessoas mais à direita geralmente abraçam ideias mais conservadoras, como pátria, família, propriedade, religião, tradição, competição...

- Hum...

- Já as pessoas que se tornam mais à esquerda... atenção novamente.... geralmente dão mais valor à igualdade, à justiça social, à liberdade política e de costumes e se sentem mais à vontade com as mudanças... acham que o futuro pode ser melhor do que o presente e por isso defendem mudar aquilo que acham errado, como as injustiças, as desigualdades, a destruição da natureza... então, abraçam ideias de mudança, como mais igualdade econômica, defesa do feminismo, antirracismo, fim das fronteiras, liberdade sexual e escola sem religião...

- Faz sentido... minha professora fala mesmo sobre algumas dessas coisas…, mas porque você disse pessoas que se tornam mais de direita ou se tornam mais de esquerda?

- Porque nenhum bebê nasce de direita, de centro ou de esquerda, então me parece que o o comportamento social e o aprendizado dos valores começa cedo na infância...

- Então, aprendem com os pais?

- Acho que é uma mistura de alguns fatores genéticos que afetam o desenvolvimento do cérebro combinados com o meio social em que a pessoa nasceu... o exemplo dos parentes e amigos... esta é uma discussão antiga, tem até uma expressão em inglês: nature or nurture, quer dizer, o que é mais importante, natureza ou cultura?

- Interessante... e sempre houve essa divisão entre esquerda e direita?

- Talvez em toda a história tenha havido pessoas mais e outras menos favoráveis a mudanças... Por exemplo, na época da escravidão, as pessoas mais conservadoras achavam que a escravidão sempre havia existido e continuaria existindo e que seria parte da natureza humana... Assim, os donos de escravizados adotavam este pensamento porque ele garantia seu direito de continuar explorando o trabalho escravizado… para defender essa ideia usavam argumentos científicos da época que diziam que os escravizados não eram seres humanos como os brancos, que eram estúpidos, que não tinham sentimentos como os brancos, que não sabiam viver sem os seus senhores...

- Nossa! Não tinha lei contra o racismo?

- As leis que existiam na época foram criadas pelos donos dos escravizados para proteger a si mesmos!

- Ixxe!

- Enquanto isso, outras pessoas achavam que a escravidão era injusta, então procuraram saber direito e constataram que os escravizados não eram seres inferiores, que todos as pessoas possuem os mesmos sentimentos e capacidades, que não existe gente melhor nem pior... somos todas e todos de todas as raças, povos e etnias plenamente humanes!

- Que legal! Usaram, tipo assim... outros conhecimentos científicos?

- Sim, o método científico pode ser usado tanto pelas pessoas mais à direita quanto pelas outras mais à esquerda... a escolha do tema que vai ser estudado e a interpretação dos resultados é que pode ser influenciado pelas diferenças entre elas... por exemplo, neste momento, os cientistas mais à esquerda procuram as causas do aquecimento global e relacionam com a emissão de carbono pelos combustíveis fósseis... enquanto isso, os cientistas mais à direita procuram alternativas tecnológicas para não precisarmos mudar o modo de vida baseado em combustíveis fósseis.

- Então, a esquerda é que fala a verdade?

- Não é isso... todas as pessoas podem acreditar em falsos argumentos... muitos amigos meus de juventude arriscaram suas vidas acreditando que iriam derrubar a ditadura militar usando algumas poucas armas... milhões de pessoas acreditaram na propaganda da antiga União Soviética... ou que as previsões do Karl Marx para o fim do capitalismo seriam científicas... ou que as revoluções sociais somente acontecem por meio da luta armada...

- Não sei muita coisa sobre isso...

- É ... ainda terá tempo para saber... o que quero dizer é que todas as pessoas, mais à direita, ao centro ou à esquerda, podem acreditar em falsos argumentos porque o mundo é imenso, complexo e cheio de encruzilhadas... como aquela do ônibus ou da contratação de professores ou policiais... e não sabemos o que vai acontecer de verdade no futuro...

- Então... todas as pessoas mentem? 

- Hum... há uma diferença entre usar um argumento falso e mentir. Você pode acreditar num argumento que não sabe que é falso e não estar mentindo quando o utiliza. Mentira é quando você sabe que o argumento é falso e, mesmo sabendo, o usa.

- Faz sentido...

- Algumas pessoas mentem para alcançar seus objetivos, mas essas são fora do espectro... são perversas.

- O que é isso?

- Perverso é alguém que usa as outras pessoas em seu próprio benefício sem se importar com as consequências dos seus atos.

- E muita gente é assim?

- São minoria, felizmente, mas algumas dominam a sociedade. Como os perversos não se importam com as outras pessoas, isso torna mais fácil passar por cima de todo mundo e alcançar postos de comando... Por exemplo, os donos das indústrias de petróleo sabem que os combustíveis fósseis são a causa do aquecimento global, mas pagam cientistas que possam espalhar dúvidas sobre isto e assim ganhar tempo e dinheiro...

- Que bandidos! E... você já mentiu, vó?

- Claro que sim! Já menti por falta de coragem para assumir algum erro... para não magoar alguém, para fugir de uma responsabilidade... coisas pequenas, acho, que espero não tenham causado problemas a ninguém...,

- Às vezes também minto assim...

- Mas há momentos em que mentir pode ser necessário... quando eu era jovem, a polícia me prendeu e queria saber onde estavam escondidos meus companheiros do movimento contra a ditadura militar... é claro que não falei a verdade..., mas foi para salvar a vida deles.

- Nossa, Vó... mamãe já me contou que você foi presa...

- Sim, foi muito difícil..., mas meu projeto de vida é nunca precisar mentir.

- Ah, e você já mentiu para mim?

- Oh, minha querida... sim, um dia que você já tinha comido muito açúcar e perguntou onde estava aquele doce de leite de Lambari... eu disse que tinha acabado, mas estava escondido... desculpe.

- Tudo bem, Vó..., mas... então, pensando bem, acho que você é de esquerda... como minha professora de história!

- Você acha nossas ideias parecidas?

- Porque você adora uma novidade... você vive falando sobre o futuro e leva a sério conversas com gente mais nova, como eu!

- Já que você falou, sim, me acho mais à esquerda...

- Mas aí complicou, porque eu ia te pedir para me levar de carro na casa da minha colega... temos um trabalho para fazer...

- Posso levar, sim.

- Mas o pai dela parece que não gosta de gente “mais à esquerda”...

- Não tem problema. Não tenho raiva de quem pensa diferente... Tenho é medo de quem usa a força para impor o que pensa...

- Vó, chega de filosofia, e vamos? Combinei com ela às duas e trinta.

 

Notas

Diálogo inspirado no excelente livro que recebi da minha querida filha Ana: Open Socrates, da Agnes Callard, com gotas de Robert Sapolsky e aromas de Jonathan Haidt.

Agradeço as leituras atentas e críticas de Thalma, Ana Rodrigues, Luíza Rodrigues, Marcos Vieira, Carol Vimieiro, Anna Bárbara, Regina Caram e Daniel Maier.


 

Comentários

  1. Muito bom, Lor. Diálogo terno e inteligente, fala de política com ética, memória e afeto, sem ódio e simplificação. Raro, muito acima do comum 👏

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Deixe aqui seu comentário que será enviado para o LOR.

Mais visitadas

O Rio que sangra e amanhece

Gaza, o escândalo da dor e os labirintos da identidade - compaixão versus acusação

O ser humano é inviável? – Resposta ao Millôr Fernandes