A Globo: feudo ou fábrica de cultura, sonhos e ilusões?
Acabo de ler “A Globo – Concorrência (1985-1998)”, um livro que traz parte importante da nossa história recente, o segundo volume da trilogia sobre a maior empresa de comunicação do Brasil, escrita por Ernesto Rodrigues, nascido em Lambari, no Sul de Minas, jornalista, professor de jornalismo e que fez parte da Rede Globo durante 15 anos como editor e executivo de telejornais.
Por uma feliz casualidade, Ernesto também é meu irmão, o que não me impede de dizer que é um livro fascinante sobre os bastidores dos mecanismos pelos quais a vida de cada pessoa neste país vem sendo influenciada pela Rede Globo em seus desejos, ideologia, sonhos e votos.
São quase 700 páginas de informações - solidamente documentadas e apresentadas na forma de entrevistas, diálogos e relatos na primeira pessoa, que foram trabalhadas durante os últimos 7 anos (ia dizendo sete insanos) passando pelo rigoroso crivo profissional do mano querido.
Seu estilo jornalístico procura trazer a verdade sobre fatos
desconhecidos e conhecidos – muitos controversos, outros nem tanto - pela
opinião pública sobre a Globo. Ernesto mostra também os bastidores da luta pelo
subpoder dentro da empresa, uma trama que em nada ficaria a dever às grandes
dramaturgias da própria Globo se o livro fosse transformado numa novela
estrelada por Roberto Marinho e sua família, numa espécie de Vale Tudo pela
audiência.
O livro nos revela a fantástica (sem duplo sentido) complexidade
da organização para a produção de cultura brasileira em todos os seus aspectos
(jornalismo, política, economia, dramaturgia, humor, esporte, artes,
entretenimento, gastronomia etc.), uma obra gigantesca resultante do trabalho
de milhares de pessoas, de técnicos e funcionários aos diretores de
programação, passando por artistas, jornalistas e escritores, num afazer
cotidiano turbinado pelo fascínio e responsabilidade da repercussão nacional da
programação, cujo ritmo de trabalho é pautado pela competição interna e pelos altos
salários em relação ao mercado de trabalho em geral.
A Globo é uma das grandes organizações de comunicação do
mundo (a quarta entre as TV abertas), apesar de estar num país na periferia do
capitalismo e das limitações próprias de uma empresa privada, que é conduzida
de forma centralizada e autoritária, sujeita, portanto, às escolhas arbitrárias
feitas por seus proprietários – nem sempre as mais acertadas, mesmo do ponto de vista do capital.
A estrutura de poder da Globo no Brasil faz lembrar as
ideias do economista socialista Yanis Varoufakis (que foi ministro da economia
da Grécia), que mostra como as grandes empresas que são donas da “nuvem
digital” (Google, Amazon, Meta, Apple, Alibaba etc.) “mataram o capitalismo” a
partir da crise econômica de 2008, desenvolvendo um novo modo de produção que
ele chama de Tecnofeudalismo,
no qual o arrendamento do “espaço” nas nuvens é a nova forma de dominação
econômica, que torna as empresas capitalistas tradicionais seus novos vassalos
e o restante da humanidade seus servos dependentes.
Neste sentido, entendo que a Globo seria uma espécie de
ensaio para este modo de produção tecnofeudalista, pois Roberto Marinho, usando
seu poder econômico e político (do jornal O Globo), recebeu do governo central
(como os reis e a igreja católica repartiam as terras no feudalismo) uma
concessão para comercializar um “telespaço” (canais de TV). Com a concessão nas
mãos, passou a explorar o trabalho de seus jornalistas, artistas e técnicos (os
artesãos) para manter a atenção daqueles que residem em suas terras (medido em
índices de audiência). Quanto maior o Ibope (a nuvem), maior o valor do aluguel do
telespaço (renda) para a publicidade.
O livro do Ernesto traz informações que me fazem suspeitar que os donos da Globo vêm
desfrutando deste modo de produção, o tecnofeudalismo, no qual, como em qualquer feudo, a norma pétrea seria fazer aquilo que a família Marinho quer, como disse um de seus
mais importantes diretores, Evandro Carlos de Andrade.
Ao sabor dos seus próprios interesses, a família decidiu
apoiar a Ditadura Militar, se opor às eleições diretas, manipular a disputa eleitoral
entre Lula e Collor e outras intervenções políticas que tiveram alcance
nacional devido ao seu poder imenso de atingir cada domicílio brasileiro que
possuísse uma TV, mesmo que não tivesse ainda uma geladeira.
A participação importantíssima da Globo na construção da
hegemonia ideológica conservadora me parece evidente, apesar, é claro, dela
dividir este papel com outras empresas de comunicação, as igrejas, as forças
armadas e políticas.
Nas últimas décadas, os desejos privados da família Marinho modificaram
em maior ou menor grau a vida de cada pessoa no Brasil. Um exemplo deste poder,
relatado no livro do Ernesto, foi o que disse a esposa de Roberto Marinho a
respeito da relação do marido com Fernando Collor:
- O Roberto colocou ele lá, mas depois tirou.
“Lá” era apenas a Presidência da República e a escolha do
dono da Globo não foi algo trivial, pois, se verdadeiro o seu poder de
influência, ela foi uma das causas da catástrofe política e econômica que se
abateu sobre o país e que custou o sofrimento de milhões de pessoas e abriu
espaço para o fortalecimento da extrema direita que vem assolando o país desde
então, na onda do neoliberalismo.
No outro lado dos interesses privados, é dignificante
ler no livro do Ernesto a resistência criativa e cotidiana do quadro de
artistas, jornalistas e funcionários da Globo, no seu esforço incansável para manter
um compromisso com a verdade e o interesse público, apesar do controle rígido da
família Marinho sobre cada pessoa contratada pela empresa.
A Globo é uma novela que ainda não acabou.
Aguardo o lançamento do terceiro volume, em março de 2026, Mano!

Comentários
Postar um comentário
Deixe aqui seu comentário que será enviado para o LOR.