Desigualdade x Segurança x Crise climática



Lamentando profundamente a mais recente matança do governo de extrema direita no Rio, uma pessoa muito querida disse:

- A esquerda precisa de um programa de segurança pública para vencer as próximas eleições e evitar a volta da extrema direita ao governo.

Lembrei que a chamada “segurança” seria, no senso comum, o aumento do policiamento e comentei que esta proposta, de fato, vai contra os princípios da “esquerda”, pois seria enxugar gelo, ou seja, apenas combater os efeitos, a violência, e não sua causa, a desigualdade.

A dor moral causada em nós pela fileira de corpos de homens negros mortos pela polícia militar  interdita nossa capacidade de pensar com clareza sobre essa dolorosa questão (ver aqui Intercept de ontem), especialmente para pessoas que estão mais próximas do acontecimento. Retomo aqui nossa conversa, por escrito.

Começo pelos fatos, o tamanho do problema, ou seja, os indicadores de criminalidade no Brasil (fontes dos dados abaixo). 

21 pessoas por 100 MIL são vítimas de homicídio anualmente.

198 pessoas por 100 MIL são vítimas de roubo anualmente.

1 pessoa por 100 MIL é vítima de latrocínio anualmente.

3 pessoas por 100 MIL são mortas pela polícia anualmente, ou seja, 17 pessoas são mortas pela polícia todos os dias.

Isto quer dizer que a população em geral (nós, da classe média para cima, menos) tem 3 vezes mais chance de morrer nas mãos da polícia do que pela arma de um assaltante.

Além disso, a maior parte das mortes resulta da chamada Guerra às Drogas, a cruzada moralista iniciada por Richard Nixon na década de 70 para criminalizar a comunidade negra norte-americana e reduzir seu poder de voto predominantemente democrata.

Enquanto isso, cerca de 90 MIL pessoas em cada 100 MIL são vítimas das desigualdades (baixos salários, subemprego, fala de moradia, saúde precária, falta de saneamento básico, analfabetismo funcional, discriminação de gênero e raça, violência policial contra pobres, exploração pelas milícias em áreas pobres, terror causado pelos traficantes nas favelas e genocídio dos povos indígenas). 

E essas desigualdades também matam e elas vêm aumentando pelo enriquecimento estratosférico dos novos senhores feudais - os donos das nuvens digitais - desde 2008, a última crise do capitalismo - ou seu fim, como pensa o Yanis Varoufakis, - e pelo agravamento da crise climática.

Aumento da desigualdade e mudanças ambientais sempre trouxeram mais violência e guerras (ver “Colapso” de Jared Diamond).

Então, mesmo para a “esquerda” social-democrata, como Lula e aliados, a esquerda que não questiona a sociedade de classes e defende o capitalismo humanizado, a prioridade tem que ser combater a desigualdade e a crise climática.

Indo mais à “esquerda”, para os socialistas, o papel da polícia na atual sociedade de classes sempre foi garantir a desigualdade, ou seja, proteger a propriedade privada da minoria rica contra a pobreza da maioria.

O sonho da esquerda socialista seria uma sociedade sem classes, portanto, sem a necessidade da polícia armada como a conhecemos, especialmente a polícia militar. Mesmo nas sociedades socialdemocratas atuais em alguns países, a polícia já foi profundamente transformada para cuidar das pessoas (ver documentário de Michael Moore).

Claro que numa futura sociedade socialista haverá necessidade de cuidados públicos com a segurança, pois sempre haverá pessoas envolvidas em desavenças emocionais, vítimas de doenças mentais e conflitos individuais, mas precisaremos de uma polícia inteligente treinada salvar vidas e não para matar.

Por tudo isso, a pauta prioritária da direita sempre será a “segurança” (mais polícia para defender o capital) e a pauta prioritária da esquerda será contra as desigualdades (mais justiça social) e contra o capitalismo insustentável e destruidor do ambiente.

Espero que o sonho socialista sobreviva às catástrofes climáticas, ao fim do capitalismo... e às próximas eleições.

Lor

 

Fontes:

Observatório dos Direitos Humanos do Governo Federal

Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP)

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)

Atlas da Violência (parceria Ipea/FBSP)


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