O algoz ritmo do envelhecer
Falar sobre o
próprio envelhecimento não é de bom tom na nossa sociedade, pois espera-se que
mantenhamos o “espírito jovem”, e qualquer reclamação referente aos problemas
da idade pode ser desqualificada como depressão, pessimismo ou mimimi, como se
faz com as mulheres que protestam contra o machismo ou com as pessoas negras que
denunciam o racismo estrutural.
Talvez essa
atitude negacionista seja decorrente do medo que todos temos de envelhecer,
porque, de fato, isso significa sofrimento para a maioria das pessoas, como
demonstra Simone de Beauvoir em seu livro “A
Velhice”, que comentei aqui, um ensaio profundo baseado em ampla
documentação histórica, literária e filosófica, indispensável para quem chegou
aos sessenta-setenta e para quem pretende não optar pela alternativa.
Não é
possível resumir as centenas de páginas de mais uma grande obra de Beauvoir,
mas destaco alguns pontos:
- Envelhecer biologicamente torna a
vida mais difícil do ponto de vista biológico, social, emocional e
financeiro para todos os seres humanos de forma variável e muito
dependente das diferenças culturais.
- A maioria da população é pobre e
não possui reservas financeiras quando se aposenta ou atinge a velhice.
Pobreza e velhice associadas aumentam a solidão, a falta de cuidados e a
morte antecipada.
- Quanto mais competitiva e
desigual for a sociedade, pior será a condição geral das idosas e idosos.
O individualismo, a competição e a meritocracia no capitalismo e suas
evoluções (ultraliberalismo) destroem as relações
sociais, as redes de apoio e as comunidades, aumentando a solidão e
isolamento das pessoas idosas.
- Nas sociedades patriarcais, as
mulheres idosas podem até viver uns anos a mais, mas levam uma vida pior
do que os homens idosos.
- Há conflitos de geração, por
interesse financeiro e/ou mudanças tecnológicas de uma geração para outra,
que aumentam o isolamento e incapacitam progressivamente as pessoas
idosas.
- Somos seres históricos, então
cada época tem seus costumes, valores, sua arte, suas músicas, gírias e as
novas gerações precisam afirmar sua identidade negando até certo ponto a
cultura de seus pais.
- Entre os dez por cento mais
ricos, envelhecer também e motivo de sofrimento para a maior parte das
pessoas, pois se tornam mais solitárias quando perdem o sentido da vida -
que geralmente foi construído em torno do trabalho, do casamento, dos
filhos e do sexo - ou se tornam doentes.
- Mesmo nessa população
privilegiada econômica e intelectualmente, apenas uma minoria passa a
velhice sem doenças graves, sem solidão, sem angústia ou
depressão.
Nessa espécie
de algoritmo do envelhecimento, apesar dos meus privilégios: - homem,
branco, hetero, classe média, com uma querida rede familiar, boas amigas e bons
amigos, relativamente saudável, ainda ativo profissional, política e
intelectualmente... e artista! - ainda assim, envelhecer não
tem sido fácil - basta ver a coleção de diagnósticos que já reuni em meu
portfólio clínico.
Destaquei o
fato de eu também ser artista, pois Simone de Beauvoir diz que poucas pessoas
atingem a velhice sem muita angústia e, entre elas, destaca alguns artistas
(pintores) que terminaram seus dias de forma excepcionalmente ativa e
aparentemente felizes, como Monet e Picasso. Talvez possamos incluir
nessa categoria Fernanda Montenegro, Elza Soares, Ziraldo, Ângelo Machado, como exemplos nossos de
outros gêneros de artes e artistas.
Talvez
artistas sejam pessoas que desenvolveram eus criativos e relativamente
independentes do senso comum (quanto aos valores relacionados a trabalho,
família e sexo), então a arte nos permitiria sublimar a angústia existencial,
fornecendo-nos algum sentido para a vida na manutenção de atividades criativas
e socializantes ao longo do envelhecimento.
O querido Henfil dizia que todo artista é
meio exibido e que ele era assim porque sua mãe (a famosa Dona Maria) o havia
amado muito, construindo nele uma autoestima poderosa, um grande eu que
enfrentava um poderoso super eu cristão, socialista e mineiro.
Mesmo que eu
também tenha recebido de presente os tais grandes ego e superego, como o Henfil
- que, infelizmente, não teve a oportunidade de envelhecer, - preciso me
agarrar às tais ferramentas disponíveis aos artistas, para construir passarelas
provisórias sobre os abismos cotidianos que se abrem sob meus pés quando a
morte se insinua numa sombra qualquer.
Para
compreender o envelhecimento de forma ampla, no “A Velhice”, Simone revisita a
vida de idosos famosos em documentos históricos e diversas obras literárias,
entre elas a peça Rei Lear de Shakespeare, o que nos motivou (Thalma e eu) a
assistirmos um filme russo de 1971 (VER
AQUI) e relermos a edição brasileira da peça original na maravilhosa
tradução do saudoso Millôr Fernandes.
Simone
menciona o Rei Lear, mas nada fala sobre o Dom Quixote de Miguel de Cervantes,
que, eu imaginava, seria também um personagem idoso. Sabendo que
Shakespeare e Cervantes foram contemporâneos, desconfio que ambos inauguraram
na sociedade europeia a construção do mito do indivíduo que se move por conta
própria (sem deus), mito este fundamental para o desenvolvimento da cultura
individualista no capitalismo subsequente.
Então, fui
rever o Dom Quixote, e, de fato, no texto de Cervantes ele tem “apenas” 50
anos, - o que seria considerado um velho há 500 anos, - então, talvez eu
tenha ficado sugestionado pelas ilustrações de Gustave Doré, nas quais o Dom
Alonso Quijano aparenta ser mais idoso (ver abaixo uma delas).
A propósito
da hipótese de Dom Quixote ser um avatar adequado à meritocracia capitalista,
no musical O Homem de La Mancha, com Sofia Loren e
Peter O’Toole, no final hollywoodiano, Dom Quixote ganha um gás de vitalidade
para terminar artisticamente cantando vitorioso sobre a velhice e a morte: To
dream the impossible dream!
O resultado
destas leituras, conversas e filmes foi que, numa madrugada acordei com uma
paródia de D. Quixote - adaptada para os tempos atuais - pedindo para ser
escrita.
Se desejar
conhecer essa paródia em XIII breves atos, O Pretérito Quase Perfeito, clique aqui.
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