O algoz ritmo do envelhecer

 



Falar sobre o próprio envelhecimento não é de bom tom na nossa sociedade, pois espera-se que mantenhamos o “espírito jovem”, e qualquer reclamação referente aos problemas da idade pode ser desqualificada como depressão, pessimismo ou mimimi, como se faz com as mulheres que protestam contra o machismo ou com as pessoas negras que denunciam o racismo estrutural.

Talvez essa atitude negacionista seja decorrente do medo que todos temos de envelhecer, porque, de fato, isso significa sofrimento para a maioria das pessoas, como demonstra Simone de Beauvoir em seu livro “A Velhice”, que comentei aqui, um ensaio profundo baseado em ampla documentação histórica, literária e filosófica, indispensável para quem chegou aos sessenta-setenta e para quem pretende não optar pela alternativa.

Não é possível resumir as centenas de páginas de mais uma grande obra de Beauvoir, mas destaco alguns pontos: 

  1. Envelhecer biologicamente torna a vida mais difícil do ponto de vista biológico, social, emocional e financeiro para todos os seres humanos de forma variável e muito dependente das diferenças culturais.
  2. A maioria da população é pobre e não possui reservas financeiras quando se aposenta ou atinge a velhice. Pobreza e velhice associadas aumentam a solidão, a falta de cuidados e a morte antecipada.
  3. Quanto mais competitiva e desigual for a sociedade, pior será a condição geral das idosas e idosos. O individualismo, a competição e a meritocracia no capitalismo e suas evoluções (ultraliberalismo) destroem as relações sociais, as redes de apoio e as comunidades, aumentando a solidão e isolamento das pessoas idosas. 
  4. Nas sociedades patriarcais, as mulheres idosas podem até viver uns anos a mais, mas levam uma vida pior do que os homens idosos.
  5. Há conflitos de geração, por interesse financeiro e/ou mudanças tecnológicas de uma geração para outra, que aumentam o isolamento e incapacitam progressivamente as pessoas idosas.
  6. Somos seres históricos, então cada época tem seus costumes, valores, sua arte, suas músicas, gírias e as novas gerações precisam afirmar sua identidade negando até certo ponto a cultura de seus pais. 
  7. Entre os dez por cento mais ricos, envelhecer também e motivo de sofrimento para a maior parte das pessoas, pois se tornam mais solitárias quando perdem o sentido da vida - que geralmente foi construído em torno do trabalho, do casamento, dos filhos e do sexo - ou se tornam doentes. 
  8. Mesmo nessa população privilegiada econômica e intelectualmente, apenas uma minoria passa a velhice sem doenças graves, sem solidão, sem angústia ou depressão.  

Nessa espécie de algoritmo do envelhecimento, apesar dos meus privilégios: - homem, branco, hetero, classe média, com uma querida rede familiar, boas amigas e bons amigos, relativamente saudável, ainda ativo profissional, política e intelectualmente...  e artista! - ainda assim, envelhecer não tem sido fácil - basta ver a coleção de diagnósticos que já reuni em meu portfólio clínico. 

Destaquei o fato de eu também ser artista, pois Simone de Beauvoir diz que poucas pessoas atingem a velhice sem muita angústia e, entre elas, destaca alguns artistas (pintores) que terminaram seus dias de forma excepcionalmente ativa e aparentemente felizes, como Monet e Picasso.  Talvez possamos incluir nessa categoria  Fernanda Montenegro, Elza Soares, Ziraldo, Ângelo Machado, como exemplos nossos de outros gêneros de artes e artistas.

Talvez artistas sejam pessoas que desenvolveram eus criativos e relativamente independentes do senso comum (quanto aos valores relacionados a trabalho, família e sexo), então a arte nos permitiria sublimar a angústia existencial, fornecendo-nos algum sentido para a vida na manutenção de atividades criativas e socializantes ao longo do envelhecimento. 

O querido Henfil dizia que todo artista é meio exibido e que ele era assim porque sua mãe (a famosa Dona Maria) o havia amado muito, construindo nele uma autoestima poderosa, um grande eu que enfrentava um poderoso super eu cristão, socialista e mineiro. 

Mesmo que eu também tenha recebido de presente os tais grandes ego e superego, como o Henfil - que, infelizmente, não teve a oportunidade de envelhecer, - preciso me agarrar às tais ferramentas disponíveis aos artistas, para construir passarelas provisórias sobre os abismos cotidianos que se abrem sob meus pés quando a morte se insinua numa sombra qualquer. 

Para compreender o envelhecimento de forma ampla, no “A Velhice”, Simone revisita a vida de idosos famosos em documentos históricos e diversas obras literárias, entre elas a peça Rei Lear de Shakespeare, o que nos motivou (Thalma e eu) a assistirmos um filme russo de 1971 (VER AQUI) e relermos a edição brasileira da peça original na maravilhosa tradução do saudoso Millôr Fernandes

Simone menciona o Rei Lear, mas nada fala sobre o Dom Quixote de Miguel de Cervantes, que, eu imaginava,  seria também um personagem idoso. Sabendo que Shakespeare e Cervantes foram contemporâneos, desconfio que ambos inauguraram na sociedade europeia a construção do mito do indivíduo que se move por conta própria (sem deus), mito este fundamental para o desenvolvimento da cultura individualista no capitalismo subsequente. 

Então, fui rever o Dom Quixote, e, de fato, no texto de Cervantes ele tem “apenas” 50 anos, - o que seria considerado um velho há 500 anos, - então,  talvez eu tenha ficado sugestionado pelas ilustrações de Gustave Doré, nas quais o Dom Alonso Quijano aparenta ser mais idoso (ver abaixo uma delas). 

Dom Quixote, por Gustave Doré 

 Ao contrário da trajetória progressivamente decadente no envelhecimento de Rei Lear, Dom Quixote mantém seu ego inflado a despeito de todos os revezes, - navegando em sua epopeia para além da terceira margem da sanidade mental, - e somente é derrotado quando sua família articula uma armadilha para trazê-lo à realidade da velhice, levando-o aprisionado para seu leito de morte.  

A propósito da hipótese de Dom Quixote ser um avatar adequado à meritocracia capitalista, no musical O Homem de La Mancha, com Sofia Loren e Peter O’Toole, no final hollywoodiano, Dom Quixote ganha um gás de vitalidade para terminar artisticamente cantando vitorioso sobre a velhice e a morte: To dream the impossible dream!

O resultado destas leituras, conversas e filmes foi que, numa madrugada acordei com uma paródia de D. Quixote - adaptada para os tempos atuais -  pedindo para ser escrita. 

Se desejar conhecer essa paródia em XIII breves atos, O Pretérito Quase Perfeito, clique aqui.  




Comentários

Mais visitadas

PJ, o duro

Este livro é uma ousadia

A história em quadrinhos sobre a Amazônia