Carta para minhas netas e netos

 



Vocês eram crianças e se divertiam quando eu dizia que metade do que digo é mentira e a outra metade não é verdade.

A metade-mentira era sobre o passado. Não que eu invente coisas que não aconteceram, mas sabemos que a gente edita e reedita nossa história continuamente, então, boa parte do que acreditamos que nos aconteceu é fruto da nossa mais involuntária imaginação.

A metade que não era verdade são as coisas que digo sobre o futuro. É sobre esta parte que quero lhes falar hoje, pois tenho demonstrado um estado de espírito meio pessimista diante das ameaças que meu modo de pensar projeta para o futuro do mundo. Talvez minhas ferramentas de análise da realidade não sejam adequadas para vocês.

Por exemplo, lembrem a medicina que praticava meu pai, - o bisavô Zezé de vocês, como era diferente daquela que tenho praticado e que, por sua vez, é distinta da praticada pela Luíza minha filha. Claro que temos princípios éticos em comum, mas nem o diagnóstico das doenças, - que em tese deveria mudar pouco porque as doenças são praticamente as mesmas – nem eles permaneceram do mesmo jeito. E no momento a inteligência artificial aplicada à medicina já vem dominando as novas gerações de estudantes.

Se num campo específico da vida, que é a medicina, as ferramentas de uma geração geralmente se tornam obsoletas para as seguintes, imaginem como se torna insuficiente a filosofia de uma geração para outra, ou seja, a capacidade de compreensão da complexidade do mundo em suas diversas dimensões políticas, sociais, econômicas, culturais e climáticas, que pode ser adequada para uma geração, mas provavelmente não será para a seguinte.

O lado bom dessa história é que acho que vocês também irão desenvolver ferramentas próprias para sua geração, que a minha já não é mais capaz de oferecer, que permitirão a sobrevivência de vocês neste mundo com gigantescas desigualdades econômicas, ameaça nuclear, crise climática e controle social por meio da inteligência artificial.

Creio que vocês irão criar variantes sociais mais solidárias, feministas, igualitárias e não violentas e elas, ao longo do tempo, poderão superar a variante capitalista canibal dominante neste momento.

Vocês podem reclamar: - Puxa, vô, vocês estragam o mundo e depois deixam para a gente consertar – como disse a Greta Thunberg?

Pois é, entendo a reclamação.

Mas minha geração também recebeu um mundo bem bichado pelas gerações anteriores (vejam as grandes Guerras, o Holocausto, a Guerra Fria...). Até que conseguimos melhorar umas coisas (consciência social e movimentos antirracistas e feministas, derrubamos ditaduras...) é verdade, mas também pioramos outras (adotamos o consumismo, louvamos a meritocracia, aceitamos a economia como ciência que é usada para justificar o arrocho dos trabalhadores...). O balanço não é dos melhores, reconheço, e até chamei nossa geração de baby-bombers.

Talvez seja assim mesmo: de geração em geração vamos fazendo o que podemos com as ferramentas que tivermos construído para lidar com a herança que recebemos.

Então, quando manifesto meu medo do que vai acontecer nos próximos dias - com a chegada do Imperador Trumusk ameaçando a civilização, - lembrem-se que esta postura talvez seja a metade não-verdade das minhas ideias, porque os instrumentos que usei para predizer esse futuro podem estar desatualizados. 

Quem sabe já existe na geração de vocês pessoas cultivando as primeiras células da variante social que impedirá o surgimento de novos Trumusks e trará a paz daqui algum tempo?

Beijo do

Vô LOR-ota

Comentários

Postar um comentário

Deixe aqui seu comentário que será enviado para o LOR.

Mais visitadas

PJ, o duro

Este livro é uma ousadia

A história em quadrinhos sobre a Amazônia