O filho de Deus
Quando ainda era um menino feliz, fiquei muito confuso ao descobrir naquela missa de domingo, não me lembro por que meios, que o homem pregado na cruz era o filho de Deus. Era um Jesus em tamanho natural, que me horrorizava com os olhos ainda abertos em agonia e desespero, seu sangue escorrendo dos ferimentos causados pela coroa de espinhos, suas mãos e os pés atravessados por cravos grosseiros de ferro e, mais profundamente me comoviam, seus joelhos ralados pelas quedas sucessivas a caminho do calvário, um machucado que minha experiência da infância permitia dimensionar quanta dor ele havia de ter sofrido.
Já ouvira repetidas vezes em minha família que Deus era o criador de tudo e que também existia Jesus Cristo, mas estas ideias ainda não haviam se juntado. Naquela manhã divisória do tempo sem dúvidas, de repente faltava sentido que Deus pai todo poderoso fosse incapaz de salvar seu próprio filho da morte. A não ser, fui forçado a imaginar, que Deus tenha tentado salvar Jesus, mas não conseguira porque alguma força descomunal o teria impedido, o Diabo, quem sabe.
- Acho que Deus não é tão poderoso... por que ele não salvou Jesus? - duvidei ao pé do ouvido da minha avó Maria, que rezava de olhos fechados. O diabo... sussurrei, mas vovó pediu silêncio e advertiu-me em voz baixa que Deus estava acima de tudo e não se falava no diabo dentro da igreja.
Insisti com ela que se Deus tinha mais poder do que tudo, bastaria um simples desejo seu para livrar Jesus da morte, então... ele não salvou seu filho porque não conseguiu... ou por que não quis? Vovó, olhou-me perplexa.
– Será que Jesus teria feito algo muito errado para ser castigado? Eu não compreendia a situação. Minha avó, já demonstrava impaciência com minhas perguntas: - Não, meu filho, Jesus não fez nada de errado! Ele veio ao mundo para nos salvar!
- Mas nos salvar... do quê?! Vovó fechou a cara e me mandou calar a boca.
De volta para casa, minha mãe tentou responder as dúvidas germinadas na igreja dizendo que Jesus viera ao mundo para salvar a humanidade do pecado original, um erro gravíssimo cometido pelo primeiro casal humano, Adão e Eva, que comeram uma maçã da árvore proibida.
- Mas... quem proibiu?
- Deus.
- Todas as maçãs eram proibidas?
- Não, somente as maçãs daquele pé, porque era a árvore da sabedoria, e a serpente, que era o Diabo disfarçado, convenceu a mulher a comer justamente daquela árvore para se tornar poderosa como Deus!
Uma maçã contendo a sabedoria de Deus e o Diabo na forma de serpente não explicavam a morte de Jesus e ainda aumentavam minhas dúvidas sobre o tal poder de Deus:
– Então, era mais uma das confusões do Diabo! E por que Deus não destruiu o demônio até hoje? Mamãe não soube responder, mas sugeriu conversar com Tia Maria Helena, que era a mais versada de toda a família nessas questões teológicas e espirituais.
Desisti momentaneamente do embate entre Deus e o Diabo e voltei ao Jesus crucificado – Mamãe, mas como Jesus pretendia nos salvar?
- Ele se tornou humano para Deus nos perdoar pelo pecado original, meu filho! – disse mamãe com olhar para o alto cheio de gratidão, como se pudesse ver a face de Cristo por cima de minha cabeça.
- Mas foram Adão e Eva que comeram a tal maçã... o que os filhos e netos deles e a gente têm com isso?
- Nós carregamos a mancha desse pecado original e Jesus morreu em nosso lugar, para nos salvar do inferno...
- Então, deu errado, né, porque Jesus morreu e a gente continua indo para o inferno se não rezar! – interrompi.
Mamãe fechou a cara: - Não fale assim! – e encerrou a conversa, de volta às tarefas maternas infindáveis com a casa e meus irmãos menores.
A caminho do escritório do papai, reordenei meus pensamentos até aquele momento: dois antepassados quebraram uma regra que Deus havia inventado, mesmo sabendo que Adão e Eva a iriam desobedecer, porque Deus sabe de tudo, até do futuro, e aí herdamos a culpa desse pecado, que não cometemos, mas de qualquer forma Jesus resolveu nos salvar, como?, virando homem na Terra para tentar convencer Deus a nos perdoar, o mesmo Deus que também era seu pai e que tinha inventado as maças, mas algo deu errado, talvez o Diabo atrapalhado o plano, e apesar do seu pai ser o ser mais poderoso do mundo, Jesus morreu e o Diabo continua forte, então não fomos salvos, porque continuamos indo para o inferno, por isso que ainda rezamos para sermos perdoados daquele mesmo pecado original, que não foram as pessoas vivas hoje que cometeram. Papai deu uma gargalhada: - Eu não faria um resumo melhor dessa história!
Abraçou-me com carinho e disse que ele não acreditava em nada daquelas coisas da igreja, como eu já sabia, e ainda trouxe mais dúvidas: - Tudo isso não passa de invenção dos padres, meu filho! Imagina que eles querem nos convencer que Deus pai e Jesus são a mesma pessoa!
- A mesma pessoa? Como assim!? – senti-me atordoado. Então Jesus não precisava morrer para ele mesmo perdoar a gente... que confusão! Papai continuava rindo e provocou: - Você precisa falar essas coisas com o Padre Candinho, ele vai gostar.
O padre, que frequentava nossa casa às tardes de domingo para um café extremamente quente, não achou graça nas minhas ideias e dúvidas e disse para a plateia feminina ao seu redor: - Esse menino está recebendo muita influência do pai ateu... Um colégio interno faria bem para ele... Minha mãe, minhas avós e Tia Maria Helena assentiram com a cabeça, reafirmando sua hegemonia religiosa sobre nossa família.
Não posso garantir que foram minhas dúvidas surgidas naquele domingo que me condenaram ao internato durante os sete anos seguintes, para onde fui enviado poucas semanas depois, onde apanhava para aprender a obedecer e me sentia cumprindo uma dura sentença por um crime jamais compreendido e nunca mais fui um menino feliz.
Sentença da qual meu pai poderia ter me salvado. Se quisesse.
Ou se pudesse?
Genial, sensacional, fenomenal... ri muito aqui e me identifiquei demais mesmo não tento dos tais 72 anos
ResponderExcluirBem assim.
ResponderExcluirO entrevero entre Deus e o Diabo Glauber Rocha tentou explicar.
É no trabuco, na peixeira ou no grito como vemos os pastores praticarem no culto.
Ainda que não saibamos quem os pastores invocam na verdade depende muito do dízimo.
Como Deus não precisa de dinheiro... Parece que o Diabo está gritando mais.
Perceber o momento em que a dúvida e a verdade se cruzam é muito mais importante do que o caminho que você escolher.
Nem Deus, nem o Diabo deixarão você escapar para viver a sua própria vida.
- Poizé.
ResponderExcluirÓtimo texto....
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