Não quero mais matar alguém






Depois de meses de terrorismo de estado e de uso da máquina pública a favor de Bolsonaro, veio o domingo e ele perdeu as eleições - porque teve menos votos no Sul, Sudeste e Centro-Oeste do que recebera em 2018 - e Lula liderou - com a alegria do Nordeste - a maior votação da história concedida a uma frente ampla em defesa da democracia.

No meu choro, ao final da apuração, havia desabafo, exaustão e a percepção de que eu não mais morreria em breve - de bala, raiva ou definhamento, - como vinha sentindo que aconteceria, se tivesse que enfrentar mais quatro anos de destruição social bolsonarista.

Vivemos nestes últimos anos uma política de terra arrasada – literalmente – da extrema direita, tão violenta e absurda que continuo perplexo sobre como é possível alguém apoiar o projeto bolsonarista. Por isso, tenho tentado entender esse apoiador, encontrar alguma justificativa – psicológica, sociológica, econômica, psiquiátrica, o que for - que o conserve aos meus olhos como um ser ainda pertencente à espécie humana. Não adianta usar descrições desumanizadoras, como gado, verme, minions etc., porque, além de simplistas, explicariam apenas o meu próprio ódio.

Em busca dessa compreensão, às vésperas do segundo turno da eleição, ao ver crescer nas pesquisas os votos bolsonaristas, tentei mais uma vez escrever para entender, porque a escrita me obriga a organizar os pensamentos, uma vez que estou simbolicamente diante do outro, o leitor imaginário, situação semelhante à conversa pessoal, a qual, segundo entendi da neurociência, é um dos momentos em que somos predominantemente racionais.

Justamente por isso, recorri ao recurso do diálogo no texto publicado “A manhã do outro dia”. Ao longo de sua construção, tentei desmontar minha postura anterior de que jamais voltaria a conviver com alguém que votou em Bolsonaro. Ao final da escrita, senti-me um pouco mais em paz, pois o processo de escrever interrompeu minha mania de olhar para desconhecidos tentando adivinhar quais seriam ou não bolsonaristas. Este escrutínio mental compulsivo tornou-se comportamento cada vez mais frequente nos últimos anos, transformando meu coração num poço de rancor, de onde brotava a água suja e corrosiva do ódio, inundando-me às vezes em ondas de fantasia violenta, nas quais me via esmagando com uma barra de ferro a cabeça de um bolsonarista qualquer numa discussão eventual. Eu estava me tornando um fascista.

O texto publicado no dia seguinte à eleição expressa minha disposição de recuperar a esperança na humanidade e de recomeçar o encontro com as pessoas sem quaisquer rótulos preconcebidos, o que não significa perder de vista a posição - de trabalhador ou patrão - de cada uma delas na luta de classes da sociedade capitalista.

O post foi lido por algumas pessoas e a maioria parece apoiar a ideia de tentarmos reencontrar afetivamente os 99% da população trabalhadora – com baixos, médios ou altos salários – para, quem sabe, resgatarmos a sensibilidade social dos 50% de eleitores que optaram por Bolsonaro.

No entanto, houve também quem disse que fui bonzinho demais ao tentar compreender aqueles que cometeram - e continuam cometendo - crimes que não merecem perdão. De fato, as inúmeras e cruéis ações de uma política genocida e antissocial precisam ser punidas rigorosamente, inclusive aquelas realizadas por gente de fora do governo, como, por exemplo, o comportamento antiético, anticientífico e criminoso dos médicos que negaram a vacina, que lucraram com a propaganda e venda da cloroquina, que ridicularizaram o distanciamento social e as máscaras e assim são também responsáveis pela maior parte das quase 700 mil mortes causadas pela COVID no Brasil.

Estes criminosos e demais comparsas de Bolsonaro estão na lista - do texto anterior - daqueles que se beneficiam diretamente dele e de suas políticas. Para estes, continuo dizendo que nunca mais abrirei as portas de minha casa e do meu coração.

Houve também, por outro lado, quem achou que, depois de vencida a eleição pela frente ampla democrática, eu poderia ter aumentado o tamanho da suposta bandeira branca, reconhecendo que ambos os lados, bolsonaristas e lulistas, mereceriam a tal compreensão, pois seriam “semelhantes” e haveria uma equivalência simétrica de sentimentos e de responsabilidades entre os tais “extremos”.

Mas um dos lados desmatou e estimulou a destruição do ambiente, aumentou a pobreza, sonegou vacina, reduziu verbas para a educação e saúde, espalhou armas, aumentou a morte de mulheres, indígenas, negros e jornalistas, ameaçou a democracia diariamente e aumentou o ódio e a fome de tantas pessoas.

Enquanto o principal crime do outro lado foi usar verbas de empresas estatais para comprar o apoio de deputados e senadores nas votações de suas políticas... SOCIAIS!

Parece haver uma distância enorme entre os prejuízos causados pelos dois lados em disputa nesta última eleição. Então, vou tomar emprestado do poeta Thiago de Melo o termo “melhor”, não no sentido moralista, mas no sentido do benefício coletivo: “não somos melhores, melhor é nossa causa”.

Não posso igualar os dois lados.

Um deles é melhor para a maioria da população. O outro, tenho a esperança que possa um dia ser recuperado, reeducado, convencido ou, senão, contido no seu poder de causar danos.

Não quero mais matar alguém. Não serei mais fascista. Quero justiça.




Comentários

  1. Esse sentimento tóxico de olhar o próximo e duvidar dele antes mesmo de uma conversa, vc o descreveu com brilhantismo. O que precisamos e esperamos é que se faça justiça, se cumpra a lei e a Constituição. Só isso e é muito! E então a vida seguirá mais serena. Grande abraço!

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