Dar o primeiro tiro – legítima defesa antecipada ou excludente de ilicitude?

 


Algumas pessoas de esquerda admitem que o regime socialista na Rússia foi substituído pelo capitalismo (ia dizendo capitalismo corrupto, mas me perguntei se há algum capitalismo que não seja corruptor de tudo, da política aos recifes de coral), mas, apesar disso, elas acolhem as justificativas de Putin para iniciar a invasão da Ucrânia.

Ao contrário, outras pessoas de esquerda temos considerado a invasão russa um crime internacional, pois ela não é moralmente defensável, ou seja, não é algo que visa o bem (ou pelo menos um mal menor) para a humanidade.

Uma população que luta em defesa de seu território invadido está exercendo o direito moralmente justificado da legítima defesa. Ao contrário, iniciar uma guerra, seria moralmente correto? Se não o for, os argumentos econômicos, geopolíticos ou históricos para dar o primeiro tiro não transformam a invasão em algo justo.

Entre os motivos que me parecem moralmente defensáveis para se iniciar uma guerra (ou revolução) estão as condições de miséria extrema da população, como as revoltas de populações escravizadas e camponesas até meados do Século 19 e as revoluções francesa, russa, chinesa, cubana e vietnamita, por exemplo. Com situações específicas em cada um desses conflitos (ver Domenico Losurdo), o motivo fundamental dessas guerras é a legítima defesa, na medida em que as populações oprimidas estavam sendo massacradas.

Também há justificativa moral para as guerras de libertação das colônias exploradas impiedosamente pelas matrizes europeias, desde a Revolução Norte Americana contra a Inglaterra, passando pela revolução do Haiti contra Napoleão e a escravidão dos negros, os movimentos de libertação dos países da América Latina contra a Espanha e Portugal, até as lutas das várias ex-colônias africanas no Século 20.

Mas penso que não há qualquer justificativa moral (nenhum bem para a humanidade) para as guerras iniciadas em busca de escravos, de matérias primas, de mercados e interesses econômicos, (geralmente apoiadas em ideologias supremacistas, colonialistas e racistas), como Alemanha, Japão e Itália fizeram na Segunda Guerra Mundial, ou os Estados Unidos e OTAN em países como Iraque, Síria e Líbia repetiram recentemente.

A invasão da Ucrânia não se enquadra em revolta contra a miséria (dos russos causada pelos ucranianos), e nem numa invasão explícita do território russo (pelas forças ucranianas). Usar um potente telescópio como alça de mira não torna o inimigo mais verdadeiro ou mais perigoso.

O argumento mais usado para defender a invasão da Ucrânia seria “para conter a ameaça dos Estados Unidos", representada pela cooptação pela OTAN de vários países da Europa desde o final da Guerra Fria. Este é o mesmo raciocínio de legitima defesa antecipada que está na origem ao famigerado excludente de ilicitude defendido pelos bolsonaristas para justificar assassinatos por policiais e militares em serviço.

No entanto, usar um telescópio potente como alça de mira não torna o inimigo mais verdadeiro.

Por outro lado, ainda que houvesse um regime socialista na Rússia a ser defendido, a guerra não seria justificada, pois, como diz Ramon Cosenza, “o socialismo deveria ser atingido pelo convencimento de que é o melhor para todos, pois a conquista pela violência não é duradoura.”

Minhas leituras diárias estão no espectro centro-esquerda (Folha de São Paulo, G1, The Guardian, Publica, Intercept_Brasil, Aeon e Nexo) que trazem notícias de que os motivos de Putin e seus sócios para a invasão seria o controle econômico de riquezas ucranianas. Há uma desconfiança que Putin tenha cometido uma estupidez a partir de erro de cálculo do seu poderio militar, imaginando que seria um passeio de tanques, como a ocupação da Crimeia.

Portanto, a invasão da Ucrânia não é justificável, pois não é algo para o bem (ou para evitar um mal maior) da humanidade, aliás, ao contrário, já estamos vivendo algumas de suas consequências terríveis: aumento do risco de uma guerra nuclear, retomada da corrida armamentista em outros países, crise mundial de alimentos, milhares de soldados e civis mortos e 8 milhões de refugiados ucranianos.

Se não há justificativa moral e nem mesmo um regime socialista a defender, as pessoas que são contra o imperialismo norte-americano (também sou), estariam considerando que o inimigo do meu inimigo é meu amigo? Disse-me alguém que defende Putin: isso seria um pensamento simplista demais para explicar uma situação tão complexa como a invasão da Ucrânia.

Então, se não é moralmente justa, não é defesa do socialismo e não é anti-imperialismo norte-americano simplista, qual seria a justificativa para apoiar a invasão russa na Ucrânia?

 

Agradeço as leituras atentas, discordâncias e sugestões des amigues Álvaro Nascimento, Thalma Rodrigues, Maria das Graças Oliveira, Leonardo Diniz, Ernesto Rodrigues e Ramon Cosenza.



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