Equivocado

 


Francisco, meu neto, desenvolveu rapidamente um vocabulário amplo e, certo dia, em torno dos seus 5 anos, estava com uma expressão de tristeza, o que motivou Thalma a perguntar:


- Está triste, Francisco?

- Não, vó... – pensou um pouco e completou -... estou equivocado.

- E você sabe o que quer dizer equivocado?

- Sei... É quando estamos enganados.




É exatamente este sentimento que vem dominando minha alma nos últimos tempos, à medida que tenho aprendido certas coisas, sobre as quais andei equivocado, mas, graças a algumas autoras feministas, estou tendo a sorte de mudar de ideias.

Neste rearranjo das prateleiras mentais construídas no último meio século, três das minhas referências de vida foram desempoeiradas: o marxismo como eu o imaginava, a evolução darwiniana como aprendi e a causa ambientalista como vinha defendendo.

Começando pelo marxismo, Sílvia Federici mostrou-me que Marx praticamente desconsiderou a exploração feminina, a escravidão e o colonialismo na sua análise da acumulação primitiva para o capitalismo. Além disso, acreditou no progresso tecnológico como potencialmente transformador das condições de trabalho na direção do socialismo, apontando para a necessidade de “amadurecimento” do capitalismo para serem alcançadas condições “ideais” para o advento do socialismo.

Em conjunto, estes equívocos de Marx, dada a sua grande importância para o pensamento político dos últimos 170 anos, podem ter levado os movimentos socialistas a investirem na direção errada, aumentando a capacidade exploradora do capitalismo, inclusive contribuindo para a devastação do ambiente em todo o planeta. Ao ignorar o papel fundamental das mulheres na reprodução da vida e da força de trabalho, Marx não teria percebido as formas alternativas de culturas e desenvolvimento humano que haviam existido antes do capitalismo, as quais vem sendo massacradas junto com as mulheres (ver Mulheres e caça às bruxas de Silvia Federici) e os povos originários escravizados pelo colonialismo, com relativa indiferença dos socialistas europeus. Neste último tema, Domenico Losurdo também nos alerta para a visão estreita do marxismo ocidental sobre a importância do colonialismo.

Um ensaio recente de Stephen Buranyi fez-me reavaliar outra referência em minha vida, a evolução por meio da seleção natural, base do meu pensamento científico com a frase “nada faz sentido em biologia fora da evolução pela seleção natural” (Dobzhansky). Buranyi mostra que muitas evoluções vêm ocorrendo na “teoria da evolução” nos últimos 170 anos (também), passando pelas descobertas das informações genéticas, da epigenética, da evolução por saltos abruptos, da plasticidade, do desenvolvimento evolutivo e da evolução cultural. Um rearranjo de ideias suficiente para alguns cientistas se perguntarem se está na hora de uma nova teoria da evolução. 

O ensaio fez-me pensar que estas alterações da hipótese original de Darwin estão de acordo com o próprio modelo darwiniano, segundo o qual as modificações evolutivas acontecem por acréscimos de novas partes e novas funções às estruturas existentes, ou seja, uma construção contínua sobre aquilo que já existe.

Além disso, tive a impressão que a tentativa de se alcançar uma teoria unificadora (aquela que explicaria tudo) na biologia poderia ser, no fundo, um viés teológico (em busca de um deus único) ou teleológico (um sentido para a vida). De qualquer forma, na prática, não tenho mais coragem de dizer que “entendo” a evolução. Assumi o amador que nunca deixei de ser nesse assunto.

Sobre o meio ambiente e a proposta de luta por transformações gradualistas para sua preservação, que venho adotando desde a primeira cartilha que produzimos em defesa da Amazônia em 1979, o jornalista e escritor ambientalista George Monbiot acaba de lançar um manifesto, no qual afirma a conduta gradualista tem sido um equívoco e parece que perdemos o prazo para evitarmos o desastre climático. Devíamos ter lutado com todas as forças desde sempre para mudar o sistema capitalista, diz ele, e não ficarmos acreditando que coleta seletiva de lixo iria deter o apocalipse.

Fico pensando no pouco tempo que podemos ter e na grande força do capitalismo, enquanto recolho meu lixo reciclável com um pouco menos de entusiasmo.

Finalmente, para meu espanto, descubro que quando eu ainda era um menino a caminho do colégio interno, Carolina Maria de Jesus já descrevia em seu livro Quarto de Despejo a terrível exploração das mulheres, especialmente das negras, obrigadas a sobreviver na miséria das favelas em condições semelhantes àquelas que encontramos ainda hoje no Brasil.

No meu elitismo hétero branco e machista, jamais imaginara que o diário de Carolina, uma favelada negra, poderia ser ao mesmo tempo uma obra de arte literária e um libelo de força política tão grande. Carolina nos arrasta para seu barraco de madeira ao relatar diariamente, minuciosamente, obsessivamente, angustiadamente, e muitas vezes inutilmente, o dinheiro proveniente de sua catação e venda de papel e ferro velho, sendo obrigada a fazer escolhas heroicas com os cruzeiros insuficientes entre a comida ou o conserto do sapato furado da filha que precisa ir para a escola na chuva fria de São Paulo. Carolina engrandeceu as inúmeras pessoas que cada vez mais batem à minha porta em busca de qualquer coisa para aliviar sua miséria neste longo tempo em que vivemos sob o capitalismo.



Sim, tenho andado equivocado, mas espero haver tempo suficiente para me corrigir antes do apocalipse anunciado por Monbiot.


Lor

A partir de hoje, fora do ar, por um mês.


Comentários

  1. Também passo por momento triste e apreensivo. Temo, ainda, pelo tempo curto de nossas vidas, que nos torna apressados. Imagino que ainda deve haver muito por vir insuspeito, o que pode pelo menos, almejar alguma novidade que não seja tão catastrófica. A evolução também incorpora catástrofes, tentativas, erros... como aprender a lidar com o ambiente mais ao largo de nosso pequenino nicho de cada um, seu umwelt, seu íntimo? Talvez seja só experimentando fraassos. Vai saber!!

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