Movimentos contra a vacina, humor e corpos em libertação


Quem se surpreende com a existência de pessoas que são contra as vacinas, em pleno século 21, talvez possa compreender melhor o porquê desta postura negacionista lendo o livro da professora Myriam Bahia Lopes[i] sobre os movimentos antivacinas ocorridos em Londres e no Rio de Janeiro nos séculos 19 e 20, respectivamente. Na pesquisa que realizou para seu doutorado, ela procurou entender as razões dos grupos que se opunham à vacina contra a varíola, assim como tentou captar os sentimentos populares da época a respeito da vacinação, analisando as caricaturas publicadas sobre o assunto.

Agradeço à Myriam a gentileza de me enviar seus dois livros recentemente publicados: “Corpos inscritos” (2020) e “O humor contra a violência” (2018), os quais recomendo a quem deseja compreender melhor as pessoas que são contra as vacinas e o papel dos humoristas e cartunistas na luta contra a violência.

Em “Corpos inscritos”, dentro do conceito de John Stuart Mills de que “aquele que conhece apenas o seu lado conhece-o pouco”, Myriam deu voz histórica aos opositores da vacina e nos mostra a complexidade dos motivos que levam uma pessoa a se recusar a vacinar. São razões de ordem subjetiva que podem estar presentes também entre aqueles que se opõem à vacina contra a COVID-19: desconfiança na autoridade científica ou política, desconhecimento científico da biologia, reação ao autoritarismo governamental (na França, por exemplo), crenças religiosas, comportamento de manada, resistência aos interesses comerciais das grandes empresas, manipulação psicológica pelos meios de comunicação e até mesmo o simples medo da injeção como representação simbólica da invasão do corpo ou estupro.

É importante lembrar que havia uma corrente de pensamento que recusava a vacina contra a varíola por acreditar que ela seria apenas uma solução paliativa, que era hipocrisia da classe dominante, uma manobra que protegeria apenas as camadas mais ricas mas que de nada adiantaria diante da extrema miséria em que vivia a classe trabalhadora na Inglaterra.

No meio daquela polêmica, como agora, estavam os cartunistas, que, em sua maioria, segundo a Myriam Lopes, tomaram as dores da população contra o autoritarismo do governo brasileiro representado na figura do médico Oswaldo Cruz[ii]. A charge abaixo do Raul Pederneiras é uma das analisadas em detalhes pela Myriam e faz uma crítica à forma como as medidas de higiene foram realizadas à força, especialmente ou quase exclusivamente contra os pobres.


No outro livro, “O humor contra a violência”, Myriam recupera o papel das charges na resistência à ditadura militar no Brasil, analisando trabalhos do Henfil e de outros cartunistas, entre os quais, quero reproduzir o cartum (simplesmente GENIAL) do Quinho, “CIA tua memória falasse”, abaixo. Convido os colegas cartunistas a conhecerem este livro em que a Myriam contribuiu com texto bem estruturado.





O controle dos corpos pelo biopoder é tema da Myriam, mas também está presente no trabalho de outra escritora, a Ivana Cruz Santos[i], que também me enviou de presente seu primeiro livro “O corpo inesgotável” (2020).

(Será que as amigas estão sabendo que prometi ler apenas autoras mulheres de uns tempos para cá, - para compensar a biblioteca machista que colecionei – e estão me presenteando com seus trabalhos?)

No seu livro, Ivana apresenta o conhecimento que adquiriu em seu trabalho como “terapeuta corporal”, o qual resultou de sua formação acadêmica como terapeuta ocupacional e como bailarina. É um livro muito interessante para quem pretende se libertar, pela consciência corporal progressiva, dos aprisionamentos culturais milenares aos quais nossos corpos têm sido submetidos.

Destes três livros, escritos por duas mulheres, tratando de corpos humanos dominados sob diferentes formas, recupero uma charge que publiquei há algum tempo (CLIQUE AQUI para ver o texto completo ), sobre a primeira forma de exploração de classe: a expropriação masculina sobre o corpo das mulheres.


Desde nossas formas tribais de cultura, possivelmente na quase totalidade delas, nós homens temos nos apropriado da riqueza gerada pelas mulheres: nos trabalhos do cuidado com a prole, na coleta da alimentação cotidiana, na manutenção dos abrigos contra a chuva, o frio e o calor.

Se desejamos construir uma sociedade mais justa, a libertação de todas as pessoas começa por libertarmos as mulheres da opressão milenar que elas sofrem, apesar de serem as principais criadoras da nossa maior riqueza: a reprodução da espécie.

Enquanto isso, continuo lendo autoras mulheres: em breve comento Natália Pasternak e Margareth Dalcomo.






[i] Ivana Cruz Santos é graduada em Terapia Ocupacional pela UFMG, especializou-se em reumatologia na Alemanha e tornou-se  bailarina de dança contamporânea e integra o grupo CORPOesia. Contato www.ivanacruz.com.br

[i] Myriam Bahia Lopes é professora e pesquisadora da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais, é historiadora e doutora e pós-doutora pela Universidade de Paris 7. Contato: www.arq.ufmg.br/nehcitj

[ii] Meu nome de batismo vem da junção de Luís Pasteur e Oswaldo Cruz, uma indicação precoce dos caminhos que meu pai médico deseja para mim.


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