Na brecha da esperança

Há 20 anos era possível alguém prever o que estamos vivendo hoje? Provavelmente não, e é justamente nesta imprevisibilidade do futuro que reside a esperança.

Há algumas semanas fiz o desenho acima, tomado pela tristeza diante do crescimento de casos da variante ômicron na pandemia de COVID, assolado que estava pelo sentimento depressivo de que, como idoso, continuaria indefinidamente no distanciamento social, apesar das subsequentes doses de vacinas representadas nas marcas desesperançadas na parede da minha cela doméstica.

Dias depois, Jorge Sette e eu conversávamos sobre o futuro do atendimento em saúde no Brasil. Ele é médico e especialista em gerenciamento de saúde e fundamentou com números impressionantes a sua opinião de que temos um futuro preocupante pela frente, no qual as instituições financeiras multinacionais continuarão a absorver os planos de saúde, agravando a verticalização no atendimento médico, aumentando a exploração dos médicos e pacientes, até se tornarem empresas gigantescas na área. Um dos efeitos colaterais (ou principais) da expansão deste tipo de planos de saúde seria a destruição do nosso Sistema Único de Saúde, cada vez mais incapaz de reagir depois de ser enfraquecido ao máximo por anos de políticas de desmonte e recursos públicos insuficientes.

Fui sendo embalado neste cenário sombrio (coerentemente com o cartum acima) quando me dei conta de que, por mais lógica que nos pareça esta evolução, ela continua sendo apenas uma narrativa possível para o futuro, e para esta projeção dispomos apenas de dados do presente.

Olhando para trás, em 1980, durante a Ditadura Militar, alguém poderia imaginar, com os dados disponíveis naquele momento, que seríamos capazes de aprovar a Constituição Cidadã de 1988, incluindo nela a criação do SUS? Em 2003, durante o primeiro mandato do presidente Lula, apenas com os dados disponíveis naquele momento de euforia progressista, poderíamos imaginar a reação fascista que surgiria e que vem destruindo o país? Assim, quanto mais retroativo nosso exemplo, mais óbvio fica que se não podemos saber o que vai acontecer daqui a minutos, o que dirá, daqui a muitos anos.

Esta imprevisibilidade do futuro provoca pavor (por explicitar a falta de controle sobre nossas vidas), mas também abre espaço para acontecer aquilo que ainda não somos capazes de imaginar. Para o bem ou para o mal.

Estarei ainda isolado e aprisionado depois da nona vacina, como sugere o cartum, ou terei morrido antes? Estaremos livres da morbidade, efeitos colaterais e mortalidade da COVID depois que determinada variante desenvolver uma convivência pacífica com a humanidade, ou teremos sido aniquilados por uma cepa extremamente letal e resistente a todas as vacinas?

Podemos continuar neste jogo de hipóteses indefinidamente, sem qualquer certeza.

No entanto, é justamente esta incerteza que abre uma janela de oportunidades que nos coloca diante da possibilidade de escolhermos agir num determinado sentido ou noutro.

Voltemos a 1980. Imaginemos alguém que acreditava que o melhor para a população seria um sistema público de saúde. Esta pessoa não podia adivinhar, com os dados do presente, em plena Ditadura Militar, que haveria um SUS oito anos depois, mas se ela optasse por defender esta ideia, talvez suas ações a favor de um sistema público de saúde possam ter ajudado de alguma forma na consolidação do senso majoritário que votou pela criação do SUS.

Ao contrário, naquele 1980, alguém que acreditava na continuidade da Ditadura Militar nos próximos oito anos (os dados do presente pareciam indicar isso), poderia se conformar com a política indigente na área da saúde, que era oferecida pelos militares e seus asseclas.

Então, publico hoje o desenho desesperançado acima para dizer que, entre uma vacina e outra rabiscada na parede há mais acontecimentos possíveis do que imagina a minha vã depressão.

Nesta brecha de oportunidades, aposto minhas ações (nenhuma delas no mercado de capitais) num futuro melhor, com saúde pública, socialismo e liberdade.

Lor
Jan 22


PS: uma destas ações é participar da Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia, que tem lutado em defesa do SUS e contra a política genocida dos bolsonaristas. Convido você a participar conosco. Mande-me um e-mail e colocarei você em contato com a ABMMD. 

PS2: vale a pena ler este ensaio na AEON, nesta mesma direção, de que a esperança funciona CLIQUE AQUI

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