Cutucando Darwin!






O cientista Romeu Guimarães encontrou um aperfeiçoamento na regra da evolução: não é o mais forte que sobrevive, e sim o mais diversificado!

Para quem está pensando que ele está dizendo que a evolução se dá pelo mecanismo da seleção natural a partir da diversidade biológica numa população, é isso mesmo, mas ele vai mais longe: a diversidade interna do indivíduo facilita que seus descendentes sejam mais aptos a sobreviverem, desde que o ambiente também é diverso e está sempre mudando.

Depois de ouvir suas ideias durante uma conversa casual, resolvi entrevistar meu amigo Romeu para este blog, porque acho que este seu pensamento original e polêmico pode interessar a outras pessoas.

Lor – Conta para nós, leigos em genética, por que esta ideia é inovadora?

Romeu – Há pouco, por um feliz acaso, um daqueles surtos compreensivos “de repente”, que surgem para quem está atento, encontrei um artigo que representa bem o pensamento que explica o porquê de a biodiversidade ser a ‘regra de ouro’ da biologia.



Lor – Qual artigo você estava lendo?

Romeu – Peter Scott e colaboradores, na Science poucas semanas atrás (referenciados no final da entrevista). Eles estudaram a introdução de jabutis em um deserto pertinho de Las Vegas. Seus resultados inspiraram-me a encontrar dentro da biologia clássica e tradicional a explicação que não aflorava à minha mente. Agora (quase) tudo passa a fazer sentido: a sobrevivência favorecida daquele que tem constituição mais “diversificada”, do mais internamente variável.

Os resultados também conferem materialidade aos gráficos arborescentes que a teoria evolutiva usa para organizar a enorme variedade de espécies em linhagens de parentesco. As ramificações arbóreas não são somente produto automático da sucessão e superposição de mutações (grande parte destas até seletivamente ´neutras´), mas seguem também processos seletivos que favorecem a biodiversidade.


Lor – Você diz mais “diverso” em que sentido?

Romeu – Na resolução do aparente paradoxo: como pode “um” indivíduo ser portador de diversidade? Agora tudo fica óbvio. O indivíduo biodiverso é aquele que possui grande número de genes onde os alelos (materno e paterno) são diferentes entre si.


Lor - Uma pessoa cujo material genético que veio da mãe é diferente do material genético que veio do pai?

Romeu – Isso mesmo, o que a genética chama de genes ou locus heterozigotos. A proporção de genes que apresentam esta característica numa pessoa é chamada de ‘grau de heterozigosidade’.


Lor – Qual a consequência dessa variação entre alelos maternos e paternos?

Romeu - Isso significa, para a adaptação e a evolução que, de uns poucos indivíduos que forem introduzidos num determinado ambiente, poderão se formar linhagens diferentes umas das outras. Isso aumenta a probabilidade de sobrevivência dos descendentes daqueles poucos iniciais.


Lor – Xô vê, se entendi. Você está dizendo que uma raça pura de gatos brancos, por exemplo, tem menos variação genética “dentro dos indivíduos” e assim tem menos recursos para enfrentar eventuais variações no ambiente? Uma raça mestiça, vira-lata, teria filhotes com mais variações e assim com maior chance de sobrevivência?

Romeu – Sim, e agora fica fácil entender a geração e manutenção da biodiversidade em vez da predominância dos mais aptos, o que geraria redução da biodiversidade. Muito interessante: os heterozigotos (alelos materno e paterno diferentes) são capazes de gerar subpopulações diversas, enquanto que os homozigotos (alelos materno e paterno idênticos) não.


Lor – E a questão dos mais aptos e menos aptos?

Romeu - A diferença entre "mais aptos x menos aptos" e "os mais aptos x os menos aptos" é enorme; a primeira diferencial é relativa e indica graus, a segunda é absoluta e sem os graus, sendo tudo ou nada. Então, vale mais a primeira situação: a seleção favorece uma ampla variedade de mais aptos, em relação a outra variedade de menos aptos. Estes últimos poderão somente ter frequências reduzidas, sem ser eliminados.


Lor – Você está pondo em dúvida o macho-alfa? 

Romeu – Sim. O mito do macho-alfa sugere que ele seja beneficiado por ser ´o´ mais apto, em detrimento de todos outros menos aptos. Na realidade, não funciona ´o macho alfa contra todo o restante do alfabeto´. O macho alfa pode até ser prejudicado geneticamente, pois enquanto o fortão vigia e protege a tropa contra ameaças externas, ele não consegue vigiar sua própria tropa cheia de traições e prevaricações, que são (vejam só, moralistas!) boas para a evolução.


Lor – Dê outros exemplos, então.

Romeu - Um exemplo hipotético simplificado seria: cruzando coelhos da raça pura negra NN com coelhos da raça pura branca BB teríamos, na primeira geração todos coelhos NB, que são mestiços (pardos, cinzas) intermediários. Na segunda geração, cruzam-se mestiços entre si: NB x NB, resultando a diversidade NN, NB, BN, BB (frequências: N*e2, 2NB, B*e2), e daí em diante.


Lor – Qual a diferença entre NB e BN?

Romeu – Em geral, ou seja, para os genes que são expressados igualmente em ambos sexos (que são a maioria), não há diferença nítida em decorrência do gene N (ou B) ser proveniente de pai ou mãe ou de estar se manifestando em filho ou filha. Essa situação gera a notação genérica 2NB. No entanto, há genes que se manifestam diferentemente nos sexos. Nestes, a ordem importa e a notação deve ser mais precisa, distinguindo NB de BN.


Lor – E então?

Romeu - Isso será combinado para todos os genes que são heterozigotos (como os NB do exemplo). Então, em raciocínio sempre populacional, pode-se dizer que os mistos seriam adaptativa e evolutivamente, superiores a quaisquer de seus genitores puros, em ambientes cambiantes, o que é a regra da natureza.

A ´razão´ da natureza, que não tem planejamento nem ´engenheiros ou arquitetos´ inteligentes, é a ´sabedoria´ inata, intrínseca: enfrentar a variedade de condições ambientais produzindo e mantendo diversidade interna. Nenhum ´sabe´ do outro, sobrevive o que ´dá certo´ nas interações. 




Momentos das conversas com Romeu, 
que deram origem à entrevista, 
antes da pandemia de COVID, inclusive 
na praia de Peracanga, no Espírito Santo.





Lor – Você está dizendo que, ao contrário do que dizem os eugenistas, miscigenação é uma vantagem em relação à raça pura?

Romeu – Sim, em termos adaptativos e evolutivos (evolução se desenvolve ao longo de tempo longo). Em casos específicos, também na contemporaneidade dos membros de uma população. É bem conhecido na agropecuária que variedades nativas com frequência não apresentam produtividade elevada, porque não foram selecionadas para tal, mas para sobrevivência. Para acréscimo de produtividade, são usadas técnicas que combinam grandes extensões, linhagens melhoradas, adubos, defensivos e agrotóxicos.


Lor – E com os seres humanos?

Romeu - No caso das populações humanas, é inevitável a utilização da cor da pele como exemplo, por conta da nítida analogia com discursos racistas, mas a comparação é equivocada e indevida. A ética, atributo humano, não privilegia produtividade, mas a participação e proteção de todos, individual e socialmente. Também, não aceita escravidão, que é a regra na relação análoga, do humano com as espécies que nos alimentam, auxiliam e fornecem prazeres.

A superioridade individual dos híbridos, em genética, é diferente da superioridade evolutiva, sendo chamada de heterose (vigor do híbrido).


Lor – Explique melhor as diferenças entre estas duas “superioridades”.

Romeu - Os exemplos mais comuns da superioridade definida pelo interesse humano são dos 'milhos híbridos', que são os padrões da produtividade atual do milho, e, no caso humano, da anemia falciforme.



Lor – Não entendi. Os milhos atuais são menos diversos e a anemia falciforme é uma doença...

Romeu – A formação dos milhos híbridos foi alcançada desde a época do melhoramento genético tradicional. São híbridos dos genomas inteiros. Combinam-se pelo menos duas linhagens purificadas, p. ex., para resistência a estresse hídrico (H) e resistência a certas pragas (P). Em geral, pelo viés do foco específico, a produtividade dessas é baixa, mas pode surgir a grande surpresa do híbrido de primeira geração ser de elevada produtividade (heterose do genótipo HP) – grandes espigas, com muito grãos e grãos volumosos. No entanto, se o produtor quiser obter a segunda geração, derivada de HP x HP, esta não expressará mais o fenótipo vigoroso, perdido pelo embaralhamento e recombinação. Assim, a empresa produtora dos híbridos vigorosos a partir das linhagens puras selecionadas se enriquece e os plantadores dos híbridos se tornam dependentes delas.

Meio parecida é a situação dos híbridos que podem surgir de cruzamentos entre espécies aparentadas. Todos conhecem os burros e mulas, do cruzamento de éguas com jumentos (é mais raro o de jumentas com cavalos); são fortes e bons para o trabalho de campo. Não são bons evolutivamente, porque a grande maioria é estéril.



Lor – Interessante! E a anemia falciforme?

Romeu - O caso da anemia falciforme também decorre de seleção dupla combinada, parecendo com o caso do milho híbrido. A hemoglobina que compõe nossos glóbulos vermelhos (hemácias) é chamada A, com genótipo AA. Aconteceu há muitos milênios na África tropical, região com um tipo de malária endêmica, uma mutação chamada de hemoglobina S. Os homozigotos SS sofrem de anemia, porque suas hemácias, constitucionalmente, duram pouco e se degradam – o que configura seleção ´contra´ a hemoglobina S através de doença dos homozigotos SS. Concomitantemente, naquela região, a malária promove seleção dupla: (1) ´contra´ os genótipos normais AA, porque estes adoecem pela infecção forte; (2) ´a favor´ dos heterozigotos AS (híbridos). As hemácias com hemoglobina híbrida são degradadas mais rapidamente que as normais – quando infectadas, matando junto o parasita e assim prejudicando o curso da infecção, de modo que tanto a infecção quanto a anemia são brandas. Tais indivíduos vivem mais prolongadamente que os normais e têm mais filhos. Em resumo, a anemia mata mais os SS, a malária mata mais os AA, e os AS se tornam abundantes na população. Isso configura a situação de vigor do híbrido, ou heterose, no loco específico daquela hemoglobina.


Lor – E onde mais esta sua ideia poderia ser observada?

Romeu - Isso vale também para a superioridade adaptativa das fêmeas em mamíferos, que têm os dois cromossomos X grandes e em mosaico, enquanto os machos têm só aquele ypsilonzinho ridículo de pequeno.


Lor – Mas as fêmeas pertencem à mesma população dos machos. Uma fêmea não produz filhotes mais adaptados sem a colaboração de um macho....

Romeu – São os detalhes meio complicados da genética. No entanto, quando bem entendidos, mostram certa beleza do conhecimento ao lado de alguma tristeza compassiva. Combinam-se certa estética da ordem com outra parte de estética da desordem; alguns gostam de um dos lados, outros de todos lados, ou seja, da variedade e da biodiversidade. Aos detalhes.

Fêmeas de mamíferos têm dois cromossomos X, paterno e materno. Em momento precoce do desenvolvimento fetal, só um deles permanece ativo. Todas células descendentes mantém aquela marca de qual de seus X estará ativo. Assim o corpo da fêmea é um mosaico de células com X paterno ativo ou X materno ativo. O mosaico tem alguma similaridade com a heterozigose, porque a expressão de cada gene do X é ´mais-ou-menos´ balanceada, no corpo inteiro, globalmente, pela expressão dos dois alelos, materno ou paterno. Na heterozigose, tal efeito balanceador ocorre em cada uma e em todas células do corpo; no mosaico, o efeito não ocorre em cada célula, mas somente no conjunto (de células de um determinado) corporal. O efeito de mosaico só ocorre para os genes dos cromossomos X; nos outros cromossomos (chamados autossomos) não há o efeito de mosaico e, em ambos sexos, vigora a heterozigose. É difícil explicar por que a heterozigose tradicional no cromossomo X não é boa nas fêmeas e foi descartada na evolução.


Lor – E os machos mamíferos?

Romeu - Os machos de mamíferos – que pena, coitados! – são geneticamente prejudicados. Ao possuírem um cromossomo X (grandão) e um Y (pequenino) terão grande número de genes do X em dose única, provenientes das mães (o Y vem do pai). Nestes genes, os machos não podem se beneficiar nem dos efeitos de heterozigose nem do mosaicismo. Pelo contrário, se houver alguma mutação ou variante genética não tão boa naqueles locos dos X, estas serão expressadas integralmente e poderão prejudicar os machinhos. As consequências de tal desbalanceamento podem ser responsáveis por parte da menor adaptação dos machos: morrem mais cedo que as fêmeas, em quaisquer idades.


Lor - Faz sentido evolutivamente?

Romeu - Claro que sim! Fêmeas são ´naturalmente´ (biologicamente) mais importantes que os machos nos cuidados com a prole, a começar pela gestação! Novamente, não vale a transposição direta de tal conceito (biológico) para o caso humano, que é misto de biologia e cultura. Conhecer os dois lados pode, no entanto, auxiliar na modulação da conversa. A ética, pertinente à cultura, diz que ambos, machos e fêmeas, têm iguais responsabilidades na dedicação à prole, apesar de todas diferenças naturais e sociais. Vale enorme discussão e acomodação dos significados das igualdades e diferenças, nos diversos contextos sociais nos quais estamos todos imersos.  


Lor – Obrigado por expor suas ideias aqui no meu blog em primeira mão! O que você acha que o Darwin vai dizer quando se levantar do túmulo por causa destas suas ideias? 

Romeu – Vai saber!!!??





Referências


PA Scott, LJ Allison, KJ Field, RC Averill-Murray, HB Shaffer 2020 Individual heterozygosity predicts translocation success in threatened desert tortoises. Science 370 (6520), 1086-1089 DOI: 10.1126/science.abb0421

High genomic variability predicts success in desert tortoise refugees; could inform conservation. American Association for the Advancement of Science https://www.eurekalert.org/pub_releases/2020-11/aaft-hgv112320.php

Study of threatened desert tortoises offers new conservation strategy. Animals with more genetic variation are more likely to survive relocation. https://www.sciencedaily.com/releases/2020/11/201127085456.htm




Comentários

  1. Brilhante ideia e exposição. Parabéns a Romeu. Nivaldo Manzano

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  2. Recebi de e-mail do João Amílcar Salgado. O Romeu tem o rosto parecido com o meu o que me chamou a atenção numa página do Facebook e fui atrás então conversamos há uns meses.
    Gostei d+ da conversa entrevista. E reencontrei com o LOR. Aliás, LOR corrija sua introdução, fala de mais forte como característica evolutiva favorável, em vez de mais apto à adaptação.
    Aprendi muito e tenho que ler mais vezes. Teria algunas duvidas a sanar, papo para uma conversa. Abraços aos dois Apolo

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