Vai passar



Para Ernesto e Lucas



Quando superarmos esta pandemia do coronavirus, haverá mudanças em nossa forma de viver?

Alguém já disse que é muito arriscado fazer previsões, especialmente sobre o futuro, mas precisamos nos sentir um pouco no controle de nossas vidas, por isso é natural que fiquemos a imaginar o dia seguinte depois desta gripezinha, segundo um certo presidente, aparentemente imbecil.

Meu irmão, o jornalista Ernesto Rodrigues, foi quem me chamou a atenção para os diversos discursos que andam pegando carona no vírus, num excelente comentário que escreveu sobre meu post “O vírus comunista” [1]. Ele nos alerta que existem desde os indivíduos messiânicos, para quem a pandemia seria um castigo purificador dos céus, punindo-nos pelo nosso suposto estilo Sodoma e Gomorra de viver, até os críticos do capitalismo destruidor da natureza, para quem o vírus nos obrigaria a viver de modo mais parcimonioso, menos consumista e mais ecológico, reduzindo a emissão de carbono e salvando o planeta da crise climática.

No meio termo, encontramos aqueles que percebem a pandemia como resultado natural e previsível da nossa estrutura econômica globalizada, como já dizia Bill Gates num TED de 2015, (disponível na internet), no qual ele mostra porque esperar novas pandemias e como devemos nos prevenir. Aliás, já houve romances e filmes mostrando que surtos de novos vírus letais podem ser devastadores para a humanidade. São crônicas de epidemias anunciadas e que poderiam ser evitadas, que deveriam inspirar as autoridades de saúde a investir em estruturas de atendimento médico capazes de enfrentar estes poderosos inimigos invisíveis. No entanto, muitos de nossos líderes preferem investir os recursos públicos nos poderosos amigos visíveis.

Para complicar a pandemia causada pelo vírus biológico, sofremos enorme distorção da realidade causada pela viralização de informações contraditórias, mentiras e pseudociência. Somos infectados diariamente por dados e opiniões sobre os efeitos imediatos e tardios do isolamento social, sobre supostos tratamentos cloroquínicos e interferônicos e teorias da conspiração manipuladas por interesses políticos [2] .

Então, diante de tantas verdades e inverdades já disponíveis no mundo, não resisto à tentação de inventar mais algumas.

Na primeira delas, imagino que o empobrecimento da maioria da população, decorrente da recessão econômica, poderá agravar a uberização da vida, ou seja, o aumento da produtividade no trabalho às custas da redução dos direitos trabalhistas [3]. Quanto mais gente disponível para trabalhar por qualquer coisa para sobreviver, mais baixos serão os salários e, numa consequência que nenhum economista liberal jamais contestou, maior o lucro obtido pelos donos do capital.

Assim, faz todo sentido que o governo tenha lançado mais uma de suas cortinas de fumaça com os parcos 600 reais por três meses - para os mais pobres não morrerem de fome (o que diminuiria o imenso exército de mão de obra de reserva já existente, os desempregados, que pressionam os salários para baixo), - enquanto com a outra mão reduzia direitos dos trabalhadores, numa das primeiras medidas da equipe econômica bolsonarista no combate à epidemia.

Por isso temos um presidente que aparenta ser imbecil, mas sua aposta no caos é irracional apenas para as pessoas preocupadas com vidas humanas. Deixar o vírus ceifar um punhado de velhos, doentes e outras pessoas vulneráveis faz parte dos efeitos colaterais do projeto para o qual foi eleito: desmontar o estado de proteção social para aumentar os lucros das empresas.

Por isso percebemos a raiva de Bolsonaro e seus fiéis direitistas contra a Organização Mundial da Saúde [4], porque aquela instituição endossa o trabalho de cientistas que já demonstraram que é necessário manter o isolamento social para salvar vidas. Mas isso irá travar a economia, ou seja, temporariamente poderá haver ligeira diminuição da margem de lucros que vinha em crescimento exponencial para o 1% mais rico.

A segunda verdade que inventei é que depois da pandemia haverá aumento do controle do Estado sobre os indivíduos, como resultado da experiência tecnológica de vigilância sanitária aprimorada para conter o coronavirus. Ou seja, seremos cada vez mais parecidos com a China: policiamento individual com inteligência artificial a serviço do Estado para vigiar as pessoas, que devem trabalhar exaustivamente e sem direitos, sequer de reclamar.

No entanto, por estar angustiado diante desse futuro pessimista, inventei uma terceira verdade: vamos prosseguir na onda civilizatória que vem ocorrendo no longo prazo, de acordo com o livro “O novo Iluminismo – em defesa da razão, da ciência e do humanismo” de Steven Pinker [5]. Portanto, haverá um surto de consciência social da humanidade depois do sofrimento causado pela pandemia e, de forma semelhante ao que ocorreu ao final da Segunda Guerra, quando a comoção dos sobreviventes propiciou a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1949, viveremos uma reação política em cadeia envolvendo bilhões de pessoas, as quais criarão uma nova declaração universal: a Declaração Mundial dos Direitos da Vida.

Este documento garantirá o respeito a todos os seres vivos e ao próprio planeta Terra, incluindo os seres humanos como mais uma das espécies ameaçadas de extinção. Um grande acordo será firmado entre os países, abolindo as fronteiras (já tornadas quase inúteis pela globalização e pelo coronavírus), sepultando os nacionalismos e promovendo políticas para a redução das desigualdades. Haveria um controle da voracidade do capitalismo, até que ele pudesse ser substituído por outra forma de produção baseada na igualdade, na fraternidade, na liberdade e na felicidade (recuperando este último lema, que foi retirado das bandeiras da Revolução Francesa pelos pragmáticos de sempre).

Reconheço que esta terceira verdade contraria as duas primeiras, mas, para resolver esta contradição, criei a última verdade: apesar de mínimo o nosso livre arbítrio, ainda podemos fazer escolhas para o futuro.



Lor



[1] Ver o comentário excelente do Ernesto ao final do meu texto aqui https://lorcartunista.blogspot.com/2020/03/o-virus-comunista.html


[2] Ver excelente artigo do New York Times que me foi enviado pelo amigo Yehuda Weisberg: https://www.nytimes.com/2020/04/03/opinion/coronavirus-fake-news.html.


[3] Depois de mostrar o rascunho deste texto para Thalma, ela enviou-me outro, do Frei Betto, no qual ele amplia esta ideia da uberização da vida: https://www.brasil247.com/blog/e-depois-da-pandemia).


[4] Ver a opinião de JR Guzzo contra a Organização Mundial da Saúde, na qual ele tenta matar o mensageiro () na dificuldade de contrapor dados científicos às medidas propostas pela OMS https://www.noticiasagricolas.com.br/noticias/politica-economia/255849-a-insensatez-da-oms-diante-do-virus-chines-por-j-r-guzzo.html#.XoedZOpKiUk)


[5] Ver o livro aqui https://www.amazon.com.br/novo-Iluminismo-defesa-ci%C3%AAncia-humanismo/dp/8535931449

Comentários

  1. Mano, é essa sua capacidade de ouvir, na mesma intensidade com que você diz o que pensa, sempre com inteligência, conhecimento e generosidade, que te faz uma pessoa muito especial. Um beijo. Ernesto

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