O vírus comunista





Inspirado na Luíza


Jamais imaginei que um dia concordaria com uma opinião da familícia Bolsonaro, mas, sim, o novo coronavirus é comunista!

Descobri essa surpreendente verdade 
ao tentar entender a causa do desdém que a direita mundial tem pela doença (uma gripezinha, resfriadinho, histeria, mimimi) e seu ódio contra as medidas de contenção da epidemia propostas pela Organização Mundial da Saúde. 

De início, pensei que o ódio direitista fosse devido ao medo da recessão econômica inevitável, que já está atingindo a economia mundial, pois sabemos que aquilo que os ricos mais temem é o tal do achatamento da curva... dos seus lucros exponenciais. Mas não é uma causa apenas econômica. O ódio da direita ao coronavírus é ideológico.

Primeiro, vamos examinar aquela ideia que, de tão óbvia, foi verbalizada pelo filho deputado porta voz dos Estados Unidos no Brasil: o novo vírus surgiu na China. Ainda que haja controvérsias sobre se a nova variante do coronavírus teria mesmo surgido entre os chineses, o fato de ter surtado lá em primeira mão não faz dele um vírus comunista, até porque a própria China já não o é, apesar de insistir no título, no partido único, na ditadura e no culto à monarquia (ou os presidentes vitalícios nas ditaduras comunistas não são uma espécie de monarcas?). O novo coronavírus surgiu lá por ser o país mais populoso do mundo (situação ideal para novas mutações virais), onde todo mundo vai fazer negócios (situação ideal para uma pandemia) por causa de sua economia gigantesca, a qual se tornará a maior do mundo depois do vírus, pois já está se recuperando da crise enquanto os Estados Unidos tentam se defender do vírus com o cuspe dos discursos do Trump.

No entanto, o coronavírus é comunista por outros motivos.

A primeira indicação do caráter comunista (gramsciano) do vírus surge quando pensamos naquele símbolo tão caro aos nacional-direitistas: as fronteiras nacionais. Nosso longo, velho e ultrapassado histórico de fronteiras e muros desde a antiguidade, passando pelo da China, de Berlim, de Jerusalém e México, mostra que estas divisões físicas e monumentais são incapazes de conter um vírus. O micróbio (opa, há quanto tempo não usava este nome) demonstrou que somos um único planeta, uma única aldeia global que insiste em tacar fogo em si mesma, como vem nos avisando a jovem ambientalista Greta Thunberg. Acabar com as fronteiras é uma das propostas socialistas: somos uma única espécie, trabalhadores do mundo, uni-vos! Nada tendes a perder, a não ser suas algemas (adaptei)!

Outra indicação do comunismo do vírus foi sua predileção por atacar primeiramente os países mais ricos, fazendo-os tomar as medidas amargas preventivas indicadas pela OMS, contrariando o desejo de suas elites preocupadas apenas com a continuidade dos negócios. Aliás, somente depois que elas descobriram que podem lucrar ainda e muito mais com os pacotes governamentais de ajuda à economia (leia-se bancos e grandes empresas), é que os capitalistas mais espertos (os Wall Smarts) mudaram o seu discurso, oferecendo-se para receber os financiamentos sem juros para manter a produção e os empregos.

Mais do que tudo, o vírus demonstrou cabalmente a necessidade de haver um Estado organizado, eficiente, bem equipado e capaz de planejar e conduzir operações coordenadas de prevenção, tratamento, quarentena, manutenção da ordem e abastecimento e outros serviços essenciais. Para quem queria um “estado mínimo”, isso é uma demonstração clara de que, para articular as múltiplas necessidades populacionais da humanidade, é preciso haver um Estado democraticamente forte para o planejamento de ações complexas envolvendo a vida de bilhões de pessoas. Opa, Estado importante é tudo o que mata de falta de ar (sem direito a UTI, pois todos os leitos estão ocupados com vítimas do COVID-19) os liberal-direitistas.

Dentro deste Estado que renasce das cinzas neoliberais, ressurgem com papel de destaque os órgãos de saúde pública. De repente, os profissionais da saúde se tornaram mais importantes do que os policiais; de repente, as sirenes das ambulâncias nos comovem e chamam mais nossa atenção do que o roncado metálico das viaturas e caveirões. Atualmente, de suas sacadas, as pessoas aplaudem os profissionais da saúde e não mais os policiais em suas façanhas cruéis e mortíferas sobre os pobres das periferias. Sim, um Estado com prioridade no cuidado da saúde das pessoas é uma coisa com cheiro de comunismo (Fidel deve estar se roendo de inveja no seu mausoléu).

Neste ressurgimento do Estado e da Saúde Pública, recuperamos a importância do nosso Sistema Único de Saúde, o maltratado SUS, fazendo com que seu símbolo seja visto por toda parte e seja alvo de grande preocupação porque 80% da população conta apenas com o SUS. Até o ministro da saúde (com minúscula mesmo) se apropria indevidamente de um colete do SUS para fingir que está na frente de batalha contra o coronavírus, justamente ele, o representante das empresas e indústrias da saúde, que vem tramando o desmonte do SUS para que a saúde da população fique nas mãos privadas.

Além disso, para extremo desgosto dos direito-terraplanistas, o vírus trouxe de volta a valorização dos cientistas, das universidades, da Ciência, portanto, dando um duro contragolpe na era da pós-verdade. Voltamos a buscar e ouvir a palavra das “autoridades científicas” (embora haja uma certa contradição nestes termos, como bem sabem os verdadeiros cientistas). Voltamos a confiar nas medidas orientadas por técnicos especializados na Organização Mundial de Saúde, na Anvisa e nas Secretarias de Saúde. Todos passamos a ouvir especialistas para aprendermos como o vírus aparece, como se transmite e como podemos eliminá-lo com sabão ou álcool em gel. Quem sabe retomaremos em breve nossa confiança plena nas vacinas?

Além disso, vemos ressurgir programas de renda mínima (viva o velho guerreiro senador Suplicy) e de taxação das grandes fortunas (engavetado há anos nas principais democracias liberais do mundo). Estado forte, prioridade para a saúde pública, redistribuição de renda, grande importância do SUS? Puro comunismo!

Mas o vírus, no seu estilo gramsciano, vai além da mudança nas grandes estruturas do Estado: ele quer a hegemonia cultural, ou seja, a mudança de costumes da maioria das pessoas. O vírus não se importa com a cor da pele, comportamento sexual ou gênero das pessoas (embora ele tenha certa predileção por castigar um pouco mais os homens, o que não é tão injusto assim, considerando nosso passado machista). O coronavírus não liga se você é ou foi atleta, se é vegano ou churrasqueiro, se prefere azul ou todas as cores do arco-íris. Um vírus socialista, com sombra e glitter!

E a meritocracia? Cultivada nos organogramas hierárquicos das empresas, esta planta maligna precisa do olhar devoto da manada trabalhadora para surtir seu efeito hipnótico sobre o espírito primitivo de competição dos seres humanos, aumentando sua produtividade em benefício dos donos do pedaço. Pois então chega o vírus e manda todo mundo para o home-office, o que desmanchou o feitiço, pois longe dos colegas não funciona bem a tal máquina meritocrata, aquela que fica dando choques periódicos de vaidade nos escravos modernos, para que trabalhem, trabalhem e produzam cada vez mais, numa corrida sem fim nem sentido. De que maneira, agora, o subchefe do assessor do patrão poderá exibir seu currículo para um escritório vazio? Maldito vírus, bate ele, revoltado, o seu Rolex na janela (mas fica arrasado porque ninguém escuta seu protesto, já que no restante dos prédios as panelas pedem fora Bolsonaro).

Outras mudanças importantes estão ocorrendo: a família está reunida em casa e por tanto tempo que as telas não mais estão dando conta de manter as pessoas desconectadas umas das outras. Contra o estado zumbi da vida na nuvem, estamos reaprendendo a conversar ao vivo, cozinhar juntos, brincar entre gerações, a repartir o espaço e o trabalho da casa. Sim, é claro que os bolsonaristas estão esbravejando contra este cativeiro doméstico, o que consideram uma humilhação para um 
gorila macho analfa (o que pode aumentar a violência doméstica durante a quarentena, como já foi visto em alguns lugares). Mas o saldo poderá ser positivo: a maioria dos homens se aproximará mais da família, secretando mais ocitocina, ficando menos agressivos, e isto será um passo importante para o feminismo? Feminismo!? Coisa de comunistas, sabem os eleitores do fascio-direitista.

De qualquer forma, o mundo não será o mesmo depois da pandemia. Poderemos redescobrir o papel do Estado, da solidariedade, da democracia, da ciência e do convívio social? Teremos aprendido a consumir menos, trabalhar menos e a viver mais? Estaremos um pouco mais próximos do sentido ideal do socialismo? Poderemos pensar e planejar melhor nossa vida sobre o planeta, reduzindo a crise climática e nos tornando mais autossustentáveis como civilização?

Minha única dúvida sobre o caráter comunista do vírus é a maneira como ele trata os mais velhos. A princípio, achei que ele talvez esteja eliminando prioritariamente os mais velhos porque são exatamente os mais conservadores, aqueles que mais amam o passado, que estão presos às fronteiras, às pátrias armadas e ao moralismo. São também os mais homofóbicos, mais misóginos, que mais votam em Trump, no Brexit e em Bolsonaro. Seria uma espécie de limpeza etária promovida pelo vírus?

Não sei, mas, nem tudo é perfeito, nem mesmo o novo coronavírus. Talvez seja apenas a sua juventude, seu ímpeto transformador que não percebe a fragilidade que existe em nós, os idosos. Não estamos acostumados a mudanças tão bruscas da humanidade em tão pouco tempo.

Morremos de susto, bala ou vírus.


Lor  (dia 14 do isolamento social)





Comentário que recebi de meu irmão, o jornalista Ernesto Carneiro Rodrigues.

Caronas

Não fico muito confortável com uma certa tendência de diferentes setores e olhares da sociedade pegarem uma espécie de carona com o corona, vestindo o vírus com a roupa que lhes convém, ideologicamente. Alguns, pelo que eu chamaria de impaciência ideológica, outros pelo fanatismo religioso e outros ainda por pura ignorância, todos, de alguma maneira, tem emprestado uma moral ou sentido ético à trágica devastação que o covid19 vem espalhando pelo mundo, como se o vírus fosse um anjo exterminador, um Robespierre do juízo final ou o vingador da classe trabalhadora, justiçando pecadores infiéis e capitalistas exploradores, respectivamente.

Dias atrás recebi, de uma conhecida equivocada a respeito das minhas convicções, ou da falta delas, um texto em que o autor exultava, celebrando a vinda do emissário de Jesus - o covid19 - para acertar as contas com o mundo que se afastou de deus. Havia uma alegria sinistra em cada frase do autor, enquanto ele ia listando os pecados que, em sua visão preconceituosa, anticientífica e autoritária, seriam finalmente erradicados da face da Terra pelo corona. Curiosamente, o pastor adicionava, à missão do vírus de deus, uma agenda muito parecida com a dos seguidores da menina Greta Thunberg:

"Rios estão ficando cristalinos. O ar está mais puro em todo mundo e as estrelas estão mais visíveis. Tudo em 15 dias. Enquanto a solidariedade se destaca em alguns, outros exacerbam seu egoísmo, deixando evidente quem serão os futuros moradores da Terra regenerada. E, que ironia, esse vírus abençoado parece não atacar animais. O seu alvo é a raça humana. Abençoado sim, pois nos foi ensinado que a dor é grande professora".

Mais para o final do texto, o autor, que presumo ser alguém com profunda fé evangélica, começa a apresentar a conta do êxtase:

"Dor, lágrima e sofrimento ainda serão sentido nos próximos meses, mas feliz daquele que entende esse momento sublime. No mundo espiritual, seres elevadíssimos acompanham o momento com atenção e um amor infinito. É finalmente chegada a hora. A Terra amada não será mais a mesma. (...) Que força tem a oração! Que força tem o pensamento! Tudo em 15 dias.(...) E como é infinito o amor do Cristo!!! (...) E esse Ser gigantesco olha para a Terra com piedade e amor (...) O momento é de esperança! O momento é de mudança! Mudança para uma nova Era.(...) Lembrem-se dos primeiros cristãos. Que aguardando o martírio, cantavam e louvavam o Senhor. (...) O momento atual é de igual grandeza. Bem aventurados os que entenderem e aproveitarem esse momento, pois quando tudo passar, serão bem vindos a um planeta regenerado".

Tudo na conta do covid19.

Não estou, absolutamente, repito, absolutamente, querendo comparar o seu texto com o delírio evangélico que me foi enviado. Primeiro porque seu texto, além de muito bom, como sempre, é cirúrgico e inquestionável, ao decifrar o desdém e o ódio ideológico da direita mundial pelo vírus, a obsessão inútil dos trumps e bolsonaros pelas fronteiras nacionais, a colossal necessidade que sempre teremos de estados e sistemas de saúde aparelhados, a importância dos profissionais de saúde para a sociedade, a desesperada descoberta do valor dos cientistas e da ciência e a urgência de programas de renda mínima.

Sei que, como cientista, você não acredita, claro, que o vírus tenha vontade, missão ou agenda política ou ideológica. Mas você não assina o texto como cientista. Assina como um articulista, se rendendo, ao meu ver, a um flerte com a mistificação, a partir do momento em que começa a encaixar, na declarada fantasia sobre as "preferências" do "vírus comunista", suas próprias convicções, entre elas a segregação ética e moral dos liberal-direitistas, a negação de aval político (o "m" minúsculo) ao ministro da Saúde que está tentando evitar a catástrofe brasileira, a criminalização da meritocracia e da ambição profissional, o aplauso ao confinamento doméstico dos machos e sua compulsória conversão aos valores da família (!) e ao feminismo, entre outras tarefas que você definiu como gramcianas.

Tudo na conta do covid19. Ainda que, no caso do seu texto, poeticamente falando.

E a tarefa do vírus não tem fim: você defende também que o mundo não será o mesmo depois da pandemia, apostando na redescoberta do papel do estado (o "E" maiúsculo me assusta um pouco), da solidariedade, da democracia, da ciência e do convívio social, do consumo responsável, da urgência da redução da crise climática e da opção pelo desenvolvimento sustentável. Tudo na conta do vírus.

No final do texto, sua crença ou esperança no poder transformador do vírus já ignora o gigantesco sofrimento que a pandemia está impondo à Civilização Humana (com maiúsculas) e chega a fazer uma única e passageira restrição ao corona, ao se referir à maneira como ele trata os mais velhos, entre os quais eu e muitas das pessoas que amo, você no meio, nos incluímos. Passageira porque, na frase seguinte, você relativiza sua restrição, ao nos incluir a todos, sem distinção, num dispensável grupo humano formado por "conservadores, que mais amam o passado, que estão presos às fronteiras, às pátrias armadas e ao moralismo, os mais homofóbicos, mais misóginos, que mais votam em Trump, no Brexit e em Bolsonaro".

Para completar, ainda que, como sempre, poeticamente, sob o argumento de que "nem tudo é perfeito", você se resigna com a possibilidade de o vírus, impulsionado por seu juvenil ímpeto transformador e insensível à fragilidade que existe em nós, os idosos, estar providenciando "uma espécie de limpeza etária".

Você termina o texto dizendo que morremos de susto, bala ou vírus.

Que viagem... Ficou amigo do vírus em troca do paraíso socialista?

Ernesto.



Resposta:

Ernesto, obrigado por me alertar para a possibilidade de que este meu texto permita uma leitura messiânica para os efeitos sociais do vírus, caso não seja percebida a intenção irônica na minha falsa simpatia por ele. Como sabe, não mais concordo com a proposta comunista que abracei na minha juventude, que implicava em ditadura do proletariado e revolução armada, pois aprendi o valor da democracia, da liberdade e da construção progressiva e coletiva de consensos em torno de uma sociedade mais justa.

Por outro lado, você tem razão, ironicamente também pego carona no vírus para expressar os meus valores, que são críticos à sociedade em que vivemos, ainda que poeticamente, como você disse.

Depois do seu comentário, eu retiraria uma frase do penúltimo parágrafo: “nem tudo é perfeito, nem mesmo o novo coronavírus.” – Talvez esteja aí o lapso messiânico que eu não pretendia cometer. 

Porque, no mais, continuo esperando que nossa sociedade seja mobilizada pela solidariedade e se transforme para melhor com a dura experiência desta pandemia.

Abraço grato.















Comentários

  1. Muito bom, Lor! Nesse sentido, viva o vírus! Que paradoxo, hein?

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  2. Espero com tudo isso nos tornamos seres humanos melhores , menos hipócrita, olhar para o coletivo , a natureza ,a vida e principalmente valorizar as pequenas coisas que acontece ao nosso redor,vamos superar essa pandemia .

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  3. Adorei o texto. Adorei mais ainda tê-lo recebido da minha mãe, uma pessoa com quase 70 anos, nada conservadora. Vai ser poupada pelo vírus.

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