OK, jovem, esqueça o vírus, mas não seja atropelado



Quando peguei o táxi na porta do hospital, o motorista descobriu que sou médico e perguntou, com ares de já ter uma resposta, se essa onda do coronavirus é mesmo grave como a grande mídia vem falando. Parece coisa armada para causar pânico, vender remédio, sei lá, completou.

Quando comecei a dizer que sim, que é um problema de saúde mundial, uma pandemia, com graves consequências sobre a saúde pública e a economia, ele me interrompeu desdenhando: mas só morre gente velha, não é? 


Não sei se ele se tocou que estava falando com alguém com mais de setenta anos, mas transparecia uma certeza arrogante de que a epidemia não era um problema que o preocupasse, um adulto jovem, com sinais de malhação em academia, tatuagens no braço direito com uma bandeira nacional estilizada e cabelo cortado bem rente para disfarçar o encaracolado natural.

Tentei mostrar a ele que o coronavirus parece se propagar rapidamente e atingir muitas pessoas ao mesmo tempo. Dessas, a maior parte terá uma forma mais branda da doença, como ele, provavelmente, se fosse infectado. Mas uma em cada cinco pessoas com o vírus desenvolve a forma mais grave da doença e precisa de atendimento hospitalar. Isto pode ocupar toda a capacidade de atendimento dos hospitais, fazendo com que outras doenças não sejam atendidas de forma adequada.

Por exemplo, disse a ele, se você sofrer um acidente com seu carro, ou for atropelado, ou levar um tiro, ou tiver a forma hemorrágica da dengue, coisas que podem pode acontecer com qualquer um, algumas delas, aliás, mais comuns em jovens como você, você poderá chegar ao hospital e ele estará lotado com pessoas com o coronavirus. Por isso, talvez você também corra um risco de morte maior durante a epidemia, mesmo sem estar infectado pelo vírus, por causa destas outras situações que podem colapsar o sistema de atendimento à saúde.

Por um momento ele ficou em silêncio. Achei que aquele rapaz poderia estar considerando a possibilidade de levar mais a sério a pandemia que estamos vivendo e que deverá chegar à nossa cidade em breve. Ele meneou a cabeça para a janela e se voltou para mim com um sorriso seguro nos lábios: Ah, esquento não, Deus é maior. Tudo posso naquele que me fortalece. E beijou uma pequena cruz pendurada na corrente dourada que trazia ao pescoço.

Não, ele não entendeu o risco que estamos correndo.




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